Há uma anedota com Sherlock Holmes e o Dr. Watson a fazerem campismo. A meio da noite, Holmes desafia o seu fiel assistente a olhar para o céu e a dizer-lhe o que vê. "Vejo milhões e milhões de estrelas." O detetive pede-lhe para ser mais específico, e ele continua: "Astronomicamente, isso diz-me que há milhões de galáxias e milhares de milhões de planetas. Astrologicamente, observo que Saturno está em Leão. Horologicamente, deduzo que sejam 03h15. Teologicamente, posso ver que Deus é todo-poderoso e que somos pequenos e insignificantes. Meteorologicamente, suspeito de que teremos um belo dia amanhã." Depois de ouvir a escrupulosa observação, Sherlock Holmes faz um minuto de silêncio e diz: "Watson, seu idiota... Roubaram-nos a tenda!".Esta chalaça sherlockiana ilustra bem o sentimento em relação ao novo Duna. À semelhança da elaboração de Dr. Watson, o filme do canadiano Denis Villeneuve impõe-se aos olhos do espectador como um objeto de grandeza irrefutável, uma vastidão carregada de significados ocultos - e, já agora, com uma banda sonora (de Hans Zimmer) que embrulha toda a experiência sensorial numa nota de gravidade. Mas o ponto é este: Villeneuve não tem um Holmes para chamar o filme ao plano do concreto, àquela linha básica de perceção do que se "está a passar", e por isso fica-se por uma embalagem aparatosa sem a substância e o pulso narrativos que são apanágio das ditas aventuras de ficção científica, sejam elas mais ou menos romanescas..Seja como for, os mais puritanos dirão que este Duna é a versão fiel ao romance de Frank Herbert, com uma construção visual correspondente ao futuro muito longínquo do planeta Arrakis. O ano é 10191 e o imperador ordenou a saída dos Harkonnen, que durante décadas exploraram esse planeta deserto, para passar o poder à Casa Atreides. O que é que os Harkonnen exploravam? Uma especiaria valiosa (no livro chamada melange, que será o petróleo ou a droga de Arrakis) presente na areia e no ar do deserto. A produção dessa especiaria liga-se à violência imposta pelos Harkonnen aos Fremen, um povo indígena escondido na paisagem arenosa, que aguarda o fim da opressão com a chegada de um profeta. Ora este virá na figura de Paul Atreides (Timothée Chalamet), o filho do duque Leto (Oscar Isaac) e da sua concubina Jessica (Rebecca Ferguson). Mas até que as duas linhagens se encontrem, nunca mais é sábado....Villeneuve, com provas dadas no domínio da ficção científica (Blade Runner 2049, Arrival) demora-se na inculcação do "tom" de um universo, na sugestão de que algo de formidável está para acontecer, mas o seu ramerrame formal, com planos de tirar o fôlego, vai eliminando a promessa até ao limite da frustração, quando se ouve dizer perto do fim: "This is only the beginning." Ou seja, depois de duas horas e meia em que pouco acontece para além de um desfile de imagens que atestam o design de produção de Patrice Vermette, somos lembrados de que estamos perante a primeira parte de um díptico cuja existência do segundo filme depende do sucesso deste. Boa sorte..O esforço de adaptação do(s) livro(s) de Frank Herbert, por si só, é um capítulo interessante da história do cinema. Da tentativa do chileno Alejandro Jodorowsky nos anos 1970 - que não deu em nada e custou milhões - ao filme de David Lynch, de 1984, que teve três anos de produção, passando por Ridley Scott, primeira escolha do lendário produtor Dino De Laurentiis, que acabou por reprovar o argumento (razão: uma cena de incesto que lá aparecia), Dune estabeleceu uma relação disfuncional com o ecrã. Desde logo com a adaptação de Lynch a ser tida como a obra falhada do cineasta americano. Enfim, defina-se "falhada"....Em termos objetivos, e apesar da bênção de Herbert, o filme foi um fracasso de bilheteira, a crítica não poupou o realizador que antes a conquistara com O Homem Elefante (1980), e o próprio Lynch precisou de se recompor das vicissitudes do controlo artístico (nesse tempo, eram os produtores como De Laurentiis que tinham a última palavra). Porém, o que se vê hoje nesse Duna dos eighties? Vida, sensualidade, onirismo, psicadelismo, melodia (com um tema atmosférico de Brian Eno) e monstros como só Lynch os soube idealizar. Em suma, uma obra do seu autor, numa circunstância em que este se sentiu pouco autor, mas ainda assim um objeto com rasgo..O Duna de Villeneuve, por sua vez, mune-se de um elenco sonante, que inclui, para além do trio Chalamet, Ferguson e Isaac, Charlotte Rampling, Josh Brolin, Javier Bardem, Zendaya e Jason Momoa, embora a maior parte destes atores esteja aqui só para encaixar no visual maciço, sisudo e pomposo. De tempos a tempos, a proposta prende a atenção, mas não há textura de sonho que vingue e, no geral, poucos sinais de vida sustentam o colosso soturno... Como escreveu David Lynch no seu livro de memórias, "Duna é uma história de busca pela iluminação". Ideia que vai bem com o seu misticismo pessoal. Desconfiamos de que Villeneuve, um sujeito mais voltado para o músculo dos cenários, a veja como uma boa história para fazer um figurão no grande ecrã - e aí damos-lhe todo o crédito..dnot@dn.pt