Duelo no Largo da Luz

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Num outro 3 de janeiro, há 100 anos, os actores Alves da Cunha e Nascimento Fernandes bateram-se em desagravo da honra, no Largo da Luz. As espadas retiniram, cumpridos os preceitos, na presença de padrinhos e de repórteres. O duelo terminou com os actores abraçados, na galhofa.

No dia seguinte, estreou no Olympia, então considerado "o mais distincto cinema da capital", o filme Um Duelo Célebre, realizado por Armando Layolo, com as imagens do combate da véspera, afinal encenado para promover a edição da noite do Diário de Notícias.

O Século Cómico explicou, dias depois, que tudo não passara de uma encenação montada nos jornais. Nascimento Fernandes chamara "palhaço" ao grande actor dramático, respondendo a igual "estocada" de Alves da Cunha, e a coisa precipitou-se em espadas desembainhadas. O Século Cómico alertava para possíveis consequências sérias da brincadeira, lembrando que Alves da Cunha não estaria livre de escutar, vindas dos camarotes, risadas incontinentes, em futura interpretação do Otelo de Shakespeare.

Com os duelos em alta na Lisboa afrancesada da época, Oliveira Martins condenou tal tradição "completamente estranha" no mesmo ano em que, saindo em defesa de Castilho, Ramalho chamou cobarde a Antero e acabou ferido num braço, num inesquecível confronto, na Arca d'Água do Porto. Camilo está na ficha desse duelo sobre o qual derrama o olhar pícaro n'A Doida do Candal.

Já em Alves & C.ª, Eça apresenta-nos um bravo em suores frios. Ao encontrar Lulu nos braços do Machado, Godofredo da Conceição Alves congemina duelos, chega a cobiçar uma pistola "na vitrina do Lebreton", na Rua do Ouro, propõe ao adversário que um deles se suicide. Mas quando Machado o procura à hora aprazada, passa a mão trémula pela face e ensaia uma previdente teoria que possa evitar o descrédito da firma. Enquanto ensaia estratégias de recuo, Godofredo sente, todas as manhãs, a nostalgia de uns ovos quentes e de flores na mesa, com o seu Diário de Notícias "esperando-o ao lado do prato".

Fisicamente mais próximos do Largo da Luz onde, há 100 anos, o DN promoveu um "duelo célebre", aguardamos a esgrima verbal de anunciadas contendas mediáticas a pares, na campanha confinada. Não há como evitar, apesar do distanciamento físico, uma ou outra estocada fora das regras. Possa, em todo o caso, a campanha defender a honra ameaçada da democracia.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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