Não há assim tantos realizadores que, em vida, tenham conjugado popularidade e reconhecimento da crítica em igual medida. Akira Kurosawa (1910-1998), a quem podemos chamar embaixador do cinema japonês, cineasta que venceu um Óscar, uma Palma de Ouro em Cannes e um Leão de Ouro em Veneza, é um desses nomes que, pela grandeza associada, projetam na mente imagens instantâneas, sejam as sobrancelhas franzidas de Toshiro Mifune ou as imponentes batalhas de Ran - Os Senhores da Guerra e Kagemusha, essas que, sem desprimor, arrumam a um canto Game of Thrones... É outra coisa..Mas Kurosawa, pintor, amante da natureza e da literatura ocidental - de Shakespeare a Dostoievski - foi também um mestre a olhar o drama do homem moderno, num registo mais íntimo, e as contradições do próprio Japão. Na génese do humanismo do seu cinema está um desejo de libertar as amarras da educação feudal, que marcou a mentalidade nipónica, e de valorizar o indivíduo. É isso que os sete filmes do ciclo a chegar nesta quinta-feira (17 de setembro) às salas do Nimas e do Teatro Campo Alegre testemunham, arrancando com um dos seus títulos mais emblemáticos, Os Sete Samurais (1954), que mostra o recrutamento de antigos guerreiros por um grupo de camponeses lesados pelos ataques de bandidos que lhes roubam as colheitas..Logo aqui se joga com os códigos de honra desses guerreiros, os samurais, que no filme seguinte do ciclo, Yojimbo - O Invencível (1961), voltam a estar representados na figura do icónico ator de Kurosawa, Toshiro Mifune. Em rigor, neste filme de ação e sabre ele é um ronin (samurai sem mestre, e aparentemente sem alma) que vagueia solitário numa aldeia dominada pelo conflito entre dois gangues, vendendo os seus serviços de guarda-costas ora a um dos lados ora ao outro, de maneira a provocar a ruína recíproca. E se é verdade que primeiro o vemos à luz do oportunismo, será com deliciosa surpresa que se assiste ao que lhe resta de altruísmo seletivo... Um espetáculo de poeira e saké paredes-meias com o western americano - incluindo a chegada de uma personagem com uma pistola -, que teve direito a um remake assinado por Sergio Leone. Chama-se, claro, Por Um Punhado de Dólares (1964) e tem Clint Eastwood a fazer as vezes de Mifune, com os mesmos olhos entediados..Ao contrário de Os Sete Samurais e Yojimbo, agora exibidos em cópias digitais restauradas, os restantes títulos do ciclo são inéditos nas salas portuguesas. Trata-se de uma mão-cheia de filmes que correspondem a um período riquíssimo da obra de Kurosawa - dos anos em que o cinema japonês, em geral, voltava a respirar depois da guerra e do controlo americano - e que estão à disposição da descoberta na mais justa escala: o grande ecrã..Ikiru será um dos retratos mais intimistas e comoventes que encontramos na filmografia do mestre nipónico. A história de um velho funcionário público que, depois de saber que tem um cancro, decide passar os meses que lhe restam não só a experimentar hábitos atípicos, dir-se-ia a saborear a vida, como dedicado à construção de um parque infantil, projeto até aí constantemente desviado pela burocracia municipal de que ele sempre fez parte. O momento em que Watanabe (Takashi Shimura, rosto regular do cinema de Kurosawa) se confronta com a ideia da morte, e se dá conta do vazio dos seus dias, é por isso a chave para uma sublime incursão melancólica, conduzida pela presença lírica do protagonista no contraste com a realidade "administrativa"..Aventura é a palavra de ordem deste A Fortaleza Escondida. Uma narrativa ambientada no final do século XVI, em plena guerra civil, com uma princesa e o seu tesouro em fuga, através das linhas inimigas, escoltados por um general (Toshiro Mifune) e mais dois camponeses que cobiçam o ouro. O gosto de Kurosawa pelo cinema de género está bem explícito neste filme, com uma beleza imaginativa que recai igualmente sobre a personagem da princesa, interpretada por Misa Uehara, uma debutante de 19 anos que na altura fez furor no Japão pelo estilo irrequieto de heroína de manga. É vê-la na cena memorável em que desaprova com veemência o bushido (código de honra dos samurais), considerando retrógrada a mentalidade que consente o sacrifício de outra jovem por ela. Eis o intento do cineasta em ir contra a conduta feudal..Foi o primeiro filme a cores de Kurosawa, que evidenciou (ainda mais) a consciência visual do pintor, e centra a ação, ou diferentes ações, num bairro de lata. Tudo começa nos desenhos infantis de elétricos colados num vidro e segue caminho pela fantasia de um adolescente que reproduz os gestos do condutor de elétrico como se dirigisse mesmo um... A ternura contida no olhar do realizador é algo que se afirma no modo como torna o mais "real" possível aquela ilusão, atravessando depois as várias histórias/personagens ligadas pela figura de um velho sábio. Nas entrelinhas estão os vestígios do Ocidente, mais precisamente as feridas da Segunda Guerra Mundial, mas não há aqui tristeza que não seja combatida pela luz..Derradeiro filme com Toshiro Mifune, ator que protagonizou mais de uma dezena de títulos do realizador, O Barba Ruiva coloca-o na pele de um cirurgião com métodos pouco ortodoxos. Na sua clínica ele recebe um jovem médico burguês, pouco familiarizado com o cenário de pobreza que vai encontrar, e trabalha neste a capacidade de olhar de frente os desafios da profissão. Tal como em Viver - Ikiru o cancro é a revelação de um propósito de existência, Barba Ruiva é o mestre que abre os olhos ao novato. Uma ideia, aliás, muito íntima de Kurosawa que projeta no cirurgião a memória do seu irmão mais velho, que o repreendia pelo medo de ver: "Akira, olha bem agora.".Drama histórico, que transpõe o Macbeth de Shakespeare para o contexto japonês do período das províncias em guerra, Trono de Sangue é um dos magníficos exemplares da influência do teatro Nô no cinema de Kurosawa, patente na maquilhagem esbranquiçada dos rostos e na rigorosa representação das cenas de interior. A isto o realizador acrescentou o espírito de ação, a pincelada vigorosa e o sentido de espetáculo, de novo com Toshiro Mifune a conduzir, qual maestro, o ritmo das sequências. Este é o filme que, pela via metafórica, encerra também a crítica a um Japão que declara guerra à China e depois aos Estados Unidos, considerando-se invencível.