Dos independentes às primárias

Publicado a
Atualizado a

Num conjunto de artigos anteriores, sugeri algumas pistas para a aparente estabilidade do nosso sistema partidário. Pelos inquéritos de opinião sabemos que há uma enorme insatisfação com os atuais partidos. Apenas uma percentagem muito baixa dos portugueses tende a declarar-se satisfeita com os partidos representados na Assembleia da República. Partindo desta observação, num artigo anterior, analisei o aparecimento do Bloco de Esquerda bem antes da crise de 2007 e o seu papel no sistema partidário nos últimos 20 anos. No artigo posterior, argumentei que existem enquadramentos institucionais que penalizam o aparecimento de novos partidos. Usei o exemplo do PRD para ilustrar a minha explicação. Noutro artigo, falei da "democracia suspensa no tempo" para racionalizar a aparente opção de muitos eleitores pela abstenção (mais votos brancos e nulos) em detrimento de um voto de protesto.

Neste artigo, quero falar da resposta dos principais partidos (principalmente PS/PSD/CDS) à insatisfação que sabem que enfrentam. Os partidos incumbentes, apesar das inúmeras vantagens que lhe são endossadas pela legislação atual, percebem a sua progressiva impopularidade e descredibilização. Consequentemente, nos últimos dez anos, tentaram responder de alguma forma a essa perceção. Duas dessas respostas merecem atenção: o papel dos independentes e as eleições primárias como grande projeto de renovação partidária.

Comecemos pelos independentes. Há três tipos de independentes. Os que não interessam aos partidos tradicionais, bem pelo contrário, são os "independentes indefinidos", para usar uma linguagem popularizada há pouco tempo. Não só estão afastados dos partidos tradicionais como se apresentam contra eles em eleições municipais ou presidenciais. Por isso, os partidos tradicionais criaram um arsenal legislativo poderoso para os afastar das eleições legislativas. São uma ameaça ao sistema partidário, daí que os partidos procurem complicar a sua vida constantemente. Depois, temos os "independentes dependentes". Apenas se distinguem do aparelho partidário porque não pagam as quotas mensais. Genericamente, têm carreiras em cargos públicos de escolha partidária, dependem profissionalmente dos partidos, pouco se distinguem dos boys e das girls, são tão apparatchicks como os filiados partidários. Finalmente, temos os "independentes definidos". Gente com uma carreira profissional (profissões liberais, funcionários públicos, empresários, professores universitários), que pontualmente colabora com os partidos políticos tradicionais. São estes independentes que o PS/PSD/CDS usam para justificar a sua famosa abertura à sociedade civil. Em geral, sem qualquer efeito prático como podemos facilmente observar. Por exemplo, fechada a caça ao voto, o papel que assumem nos grupos parlamentares é absolutamente marginal, sem qualquer intervenção pública relevante. Da grande maioria dos independentes recrutados em 2017 pelo PS e pela coligação PàF para a Assembleia da República nunca mais ouvimos falar. E os muito poucos que conseguem ter alguma visibilidade (como Paulo Trigo Pereira no PS ou Inês Domingos no PSD) é por mérito próprio e não por qualquer estratégia de comunicação consertada do partido com o fim de valorizar os independentes. Outros independentes participam em iniciativas dos partidos tradicionais (programas eleitorais, eventos setoriais), mas rapidamente saem de cena. Finalmente, os ministros "independentes definidos" (não confundir com os muitos ministros "independentes dependentes") mostram sempre uma fraqueza partidária confrangedora, que normalmente os incapacita para combater a voragem do aparelho (recorde-se Álvaro Santos Pereira).

O outro mecanismo de renovação partidária apregoado pelos incumbentes são as eleições primárias. Supostamente, abrem o partido a simpatizantes e renovam, assim, as escolhas. Como facilmente se percebe, no caso conhecido do PS, não trouxe qualquer vantagem uma vez passado o ato eleitoral - não houve renovação nenhuma, não trouxe novos protagonistas, não trouxe votos (o PS perdeu as eleições seguintes ao mesmo tempo que a abstenção voltou a aumentar). A nível europeu, os partidos em França e em Itália que apostaram em primárias ou estão em vias de desaparecer ou vivem em crise quase permanente. Nos Estados Unidos, o mecanismo de eleições primárias polarizou os dois partidos e danificou os equilíbrios saudáveis do sistema político. Não consigo, consequentemente, ver qualquer mérito em eleições primárias em termos de renovação interna e diminuição de abstenção.

Se o objetivo fosse realmente abrir o sistema partidário, aumentar a participação cidadã e diminuir a "cacicagem" local, então o caminho é outro completamente diferente. Teria de passar pela reforma da lei eleitoral, abertura das eleições legislativas a listas independentes, reforma do poder autárquico, despartidarização imediata das eleições para as juntas de freguesia e a prazo para as câmaras municipais (apenas listas de cidadãos), reforma do financiamento dos partidos, rerregulação do acesso à comunicação social (particularmente aos debates televisivos). Parece-me, pois, que as eleições primárias, assim como os independentes, são meras táticas para iludir o afastamento entre os partidos e a cidadania sem nenhum tipo de implicações práticas no atual sistema português.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt