Dos homens e do mar
De Roubaix, Misericórdia, de Arnaud Desplechin, a Os Miseráveis, de Ladj Ly (ambos de 2019), o cinema francês tem-nos dado retratos lúcidos e à flor da pele de uma certa rotina policial. São filmes que expõem a vivência comunitária através da ação dos seus agentes de autoridade, atentos aos pequenos e grandes delitos - seja como for, estes não surgem como dramas policiais semelhantes entre si, antes refletem a natureza específica de cada comunidade. É o caso também de Albatros, de Xavier Beauvois, que escapa a qualquer generalização no modo como se impregna de um sentido de lugar. Estamos numa pequena cidade da Normandia onde um oficial da polícia (Jérémie Renier), que vive mesmo ao lado do posto onde trabalha, passa os dias numa genuína dedicação à segurança dos seus conterrâneos, na companhia pacata dos colegas com quem vai resolvendo situações mais ou menos típicas de um lugarejo. Pode ser a detonação de um engenho explosivo à beira-mar, uma denúncia de abuso infantil ou um bêbedo ruidoso (interpretado pelo próprio Beauvois) num bar local.
Mas a ocorrência que vai assombrar subtilmente a primeira parte do filme, funcionando como um presságio, é ainda outra: durante uma sessão de fotografias de casamento, na paisagem postal das praias dessa região francesa, o corpo de um homem (que se terá suicidado) cai mesmo ao lado dos noivos, deixando-os em choque... Beauvoir, que na cena imediatamente anterior mostrara o protagonista a pedir a mão da mulher com quem tem uma filha, sinaliza assim a morte como um espectro da tragédia que assoma nesse quotidiano de procedimentos policiais normalizados.
O drama em vias de se abater sobre este homem chega muito mais à frente, quando o espectador já se acomodou na existência amena daquelas pessoas, quer da família do polícia (a mulher e a filha, interpretadas pela coargumentista e montadora Marie-Julie Maille e Madeleine Beauvoir, são a mulher e a filha do realizador) quer dos agentes em ambiente de trabalho. E quando chega o momento-chave, na forma de um erro fatal que compromete toda a postura exemplar demonstrada pela personagem de Jérémie Renier, Beauvois faz aquilo que já nos tinha maravilhado no seu labor contido de Dos Homens e dos Deuses e As Guardiãs: contempla a angústia humana como uma combustão lenta onde os detalhes vão pavimentando uma possibilidade de luz.
Quer isto dizer que o olhar de Xavier Beauvois se compromete com o tempo dramático, e embora esse não esteja em perfeito equilíbrio no filme, não deixa de lhe conferir um fôlego magnificamente assumido por Renier, o ator que torna a fuga deste polícia um tratado de melancolia. Um homem que acaba por se entregar à corrente marítima, no seu veleiro, quando os pés já não assentam bem na terra.
Albatros é o nome de um barco e estabelece correspondência simbólica com um poema de Coleridge. Ao usá-lo como título, Beauvois reenvia o nosso imaginário para uma tormenta interior que precisa de ser esconjurada por uma tormenta exterior - o mar, no seu lirismo ancestral, é bom conselheiro.
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