Donzela Guerreira: Lisboa, menina, moça e mulher madura

Arrisca-se a passar ao lado este engenhoso exercício de memória e ficção da Lisboa de 1959. <em>Donzela Guerreira</em>, a partir da inspiração das escritoras Irene Lisboa e de Maria Judite Carvalho, estreia-se hoje em poucas sessões em cinemas selecionados. A partir de agora, a cineasta Marta Pessoa é um nome a seguir.
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Surpresa bem agradável caída do céu. Depois de uma passagem discreta pelo IndieLisboa de 2019, Donzela Guerreira estreia finalmente no circuito comercial, uma longa-metragem entre a ficção pura e dura e o registo documental com imagens de arquivo. Estamos na Lisboa dos anos 1950 e seguimos a libertação de uma mulher, Emília, uma escritora que desafia convenções e sozinha trilha um caminho no meio literário, sobretudo depois de um noivado falhado.

Esta Emília criada pela cineasta Marta Pessoa é uma composição imaginada do espírito de Irene Lisboa e de Maria Judite Carvalho. Uma convocação de vultos e olhares de uma força feminina num Portugal salazarento e machista através de fotografias de uma Lisboa de outros tempos e da narração de Emília, nomeadamente por intermédio de uma emissão de rádio onde responde a perguntas de uma locutora charmosa. Donzela pronta a ir para a guerra, perde uma vida burguesa para se instalar num pequeno quarto e trabalhar num jornal para pagar contas, evitando uma existência de silêncios e de representações de papéis dados pela sociedade.

Marta Pessoa constrói um fio dramático narrativo a partir de uma junção de texto literário e de memória fotográfica de arquivo. Elementos que se dispõem numa matéria plástica simples mas sempre bem organizada, nomeadamente quando a voz desta mulher que não se resigna e traz consigo filtros de uma nostalgia muito emotiva. Anabela Brígida é a protagonista e com a sua voz e entoação notáveis ajudam-nos a ficar mais próximos da personagem, uma atriz que liga bem com a outra protagonista, uma Lisboa onde havia uma elegância intemporal e um certo gesto majestoso perdido, como se o peso do arquivo permitisse todas as possibilidades de ficção. E aí Donzela Guerreira enceta um desafio: o espetador no lugar do leitor. Dito de outro modo, é um filme para ser lido... Situa-se na mediação do peso das palavras e da suavidade da evocação, enfim, nos confins de uma saudade magoada.

Se Marta Pessoa trabalha a memória portuguesa do arquivo, fá-lo de um modo exaltante e com um cuidado estético que se descodifica em cada plano, em cada pormenor de iluminação. A própria maneira como Irene surge no começo apenas como uma sombra é a prova do tal "statement" sobre a invisibilidade feminista. Em última instância, há aqui momentos que valem mais do que muito do novo cinema feminista ativista que chega aos festivais mais abastados. O tom feminino da câmara de Pessoa não é uma bandeira, é uma bela consequência.

A cineasta articula processos discursivos da literatura de Irene Lisboa e Maria Judite Carvalho com um jogo curiosíssimo sobre a emancipação do real e um inevitável ponto de observação neutro. Aqui e ali vai-se um pouco abaixo quando precisa de um último terço mais conclusivo. Vemos soluções de objeto remediado, especialmente em virtude de um orçamento que deveria ter sido maior. Mas a melancolia do objeto nunca é perdido. O espetador sai da sala com um desconsolo que faz parte da própria ideologia do projeto, cartografando-se o pessoal e o social. Nesta Lisboa onde as fotografias do passado inventam histórias atrás de histórias, Marta Pessoa encontrou um tom certo para celebrar uma cidade que se vê e ouve.

*** Bom

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