Professor e filósofo, o norte-americano Aaron James escreveu em 2012 um livro intitulado Assholes: A Theory (Cretinos, a Teoria). O título é divertido e provocador, mas o assunto revela-se mais sério do que parece à primeira vista. Este best-seller do The New York Times deu origem a um documentário realizado pelo canadiano John Walker, Cretinos, a Teoria - em estreia no canal Odisseia (22.30) -, que faz um percurso desde a definição filosófica da palavra até ao modo como as pessoas que encaixam nesse perfil influenciam a vida em sociedade, e em determinadas organizações..Entre os entrevistados encontramos, por exemplo, o Monty Python John Cleese, que diz a certa altura, com o desaforo e naturalidade própria do comediante: "Acho que, de certa maneira, a minha mãe era uma cretina." E não está a brincar....Abordam-se aqui os casos de Harvey Weinstein, em Hollywood, de Silvio Berlusconi, em Itália, e nas entrelinhas estamos sempre a intuir um comentário a Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos paira como um fantasma sobre o conceito explorado. De resto, isso não será de estranhar se se souber que é o protagonista de outro livro de Aaron James, Assholes: A Theory of Donald Trump, publicado em 2016. À conversa com o DN, o autor explica o uso rigoroso do termo e os perigos de se ter como líder um cretino..Em teoria, o que significa ser "cretino"? O cretino é o tipo que se permite a benefícios especiais na vida em comum, a partir de um sentido enraizado de legitimidade que o imuniza contra as denúncias de outras pessoas..Então o cretino é um homem, por definição? Não tem de ser necessariamente um homem, mas a maior parte são homens, sim. Concretizando, é o tipo que numa estação de correios passa à frente na fila, porque sente que tem essa legitimidade perante todos os outros que aguardam a sua vez. Julga-se um privilegiado, porque é bem parecido ou rico, porque acha que é famoso ou algo do género. E, lá está, se alguém na fila protesta e lhe diz para respeitar quem cumpre as regras, responde mal, vira-se contra a pessoa, manda-a para um certo sítio....Quando é que se apercebeu de que este conceito estava a precisar de uma abordagem filosófica? Bem, aconteceu num dia em que eu estava a surfar no local onde o faço regularmente, aqui na Califórnia, e vi um sujeito a quebrar as regras sem mais nem menos - nós os surfistas temos regras para partilhar as ondas. E perante as nossas queixas, ele não quis saber e a coisa azedou... Foi nesse momento que pensei: "este gajo é um cretino". Mas pela primeira vez refleti sobre isso em termos filosóficos, no sentido em que percebi que o estava a classificar, a tipificá-lo, e não apenas a exprimir um sentimento. Esta é mais ou menos a questão metódica clássica que interessa aos filósofos e que permite construir uma definição. Portanto, eu tentei definir um tipo de cretino..Qual é a diferença essencial entre o termo cretino ("asshole") e outros usados num sentido aproximado, como estúpido/idiota ("jerk") ou filho da mãe ("bastard")? Normalmente chamamos cretino ("asshole" ou "ass") a alguém de pouca sensibilidade, que não tenta compreender os outros. É um chato, mas é essencialmente um chico esperto, que acredita ter privilégios sobre os outros e tenta adquiri-los com arrogância. É uma pessoa que, por exemplo, tem falhas de perceção no que diz respeito às relações sociais. Já o estúpido ou idiota ("jerk") pode fazer muitas das coisas que o cretino faria - tem também a mania que é mais do que os outros - mas eventualmente pede desculpa por ser como é. Algo que o cretino nunca faz, porque não vê razões para isso; acha justificado todo o seu comportamento. Por sua vez, o filho da mãe ("bastard") é alguém que comete uma traição, uma pessoa que não é de confiança. O cretino também não é de confiança, mas um filho da mãe não é necessariamente um cretino..A cretinice é mais perigosa do que um simples comportamento que nos incomoda no dia a dia. Estamos a falar de algo com um impacto social concreto? Sem dúvida! Há um perigo em particular que o cretino acarreta e que respeita à resolução dos problemas com que a sociedade se depara. Um cretino não ouve a razão, não tem humildade, não sente vergonha. A maior parte de nós resolve os problemas através da discussão, do esgrimir de argumentos, da crítica. Dessa forma chegamos a um acordo, à compreensão mútua. Mas o cretino é imune à contestação dos outros e, por isso, para além dos problemas em si, que surgem todos os dias, ele passa a constituir-se como um problema suplementar. Ou seja, torna-se um outro obstáculo com que um grupo, uma empresa ou até um país terão também de lidar, para além do problema inicial. E isso pode criar cisões, pôr as pessoas umas contra as outras....Ao escutá-lo, suponho que esteja a pensar num exemplo em concreto. O contexto global específico que estamos a viver, esta pandemia, é o maior dos problemas com que o mundo tem de lidar. Como avalia a ação do presidente Donald Trump nestes dias? Eu acho que Donald Trump é o cretino por excelência. É o super cretino. E é por isso que os seus apoiantes gostam dele. Porque ele desrespeita as regras e vai contra as expectativas sociais que eles desaprovam. Mas cretinos como Trump não conseguem dar respostas adequadas às questões que o mundo lhes coloca, nem sabem escutar os outros e levar em conta as opiniões que eles lhes dão. E por isso quando nos deparamos com esta pandemia, em que a vida e a morte dependem das respostas da ciência e de uma ação atempada de prevenção, convencendo as pessoas de que é preciso todo o tipo de precauções, ter como líder um cretino como Donald Trump, que vive numa realidade que ele constrói e que só ele vê, é ter a pior pessoa no pior cenário. O combate destes dias exigia termos à cabeça alguém com capacidade de resposta ao problema, alguém com bom senso. A equipa de conselheiros consegue corrigir um pouco esta incapacidade do presidente, mas mesmo as suas iniciativas, os seus esforços, acabam por ser barrados por esta personalidade inconstante. Como resultado, temos muitas mortes que podiam ter sido evitadas. Se houvesse outro tipo de pessoa na presidência americana, a taxa de mortalidade não seria tão elevada..Acha que, pelo modo como Trump está a lidar com a situação, apesar de tudo ainda pode ser reeleito? Sim, acho que sim, mas não sou um especialista em política. Por um lado, o coronavírus mostra-nos o quanto estamos dependentes uns dos outros, e isso exige mais de um político. Por outro, quando todos contemplamos a hipótese de morrermos ou de alguém que nos é querido poder morrer, respeitamos mais a figura do homem forte e determinado, que mostra ter confiança no que faz. E isso é o teatro de Trump. Ele representa a hiper confiança, um homem que a toda a hora se afirma de ação, que apregoa decisões robustas. Mas é tudo um show, é tudo arbitrário, o espectáculo de um homem só, sem que dali surjam bons resultados. Há pessoas que não se apercebem disso e ao assistir ao show de Trump pensam que ele de facto está a fazer coisas... Acho que as eleições podem cair para qualquer dos lados. Mas até lá teremos surpresas diárias..Considera que há um encorajamento da cretinice, isto é, uma tendência para a "normalização" do comportamento típico do cretino? Há, sim. Em diferentes países e culturas, mas sobretudo na americana, assiste-se a uma tendência para se dar palco aos cretinos, para lhes conferir poder. Nos Estados Unidos há muita animosidade mútua entre grupos, ressentimentos, divisões e polarização. Assistimos ao descrédito das instituições. É algo que já vinha de trás, mas tudo foi acelerado com Trump. Nas redes sociais as pessoas ofendem-se umas às outras, e claro que isto não é de agora, mas este presidente piorou muito o ambiente. As pessoas baixaram as expectativas do que deve ser e do que deve fazer um presidente. Muitos continuam a defendê-lo, outros celebram de cada vez que ele tem uma atitude normal. Infelizmente Donald Trump conseguiu ter espaço para agir enquanto o cretino que é, e o resultado disso é o naufrágio de muitas instituições. Vão precisar de muito tempo para recuperar, se é que o conseguirão..E como é que reagiu à proposta de se fazer um documentário a partir de toda esta teoria do seu livro? Quando o John Walker me falou da sua visão para o documentário - a princípio queria seguir de perto o livro - isso foi muito interessante e encorajador porque nunca tinha imaginado a coisa em termos visuais, de grafismos, vídeo.... A adaptação foi algo de novo para mim, que não tenho essas habilitações, e muito estimulante!