"Dom Juan Carlos ama Portugal, que foi o país do seu primeiro cigarro, da primeira bebida, do primeiro amor"

Como milhões de outros espanhóis, Pilar Eyre, autora de <em>Eu, o Rei - A escandalosa vida privada de Juan Carlos I de Espanha</em>, desiludiu-se com a vida de luxo e os escândalos do monarca.
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Recorda-se do 23-F? Nesse dia de tentativa de golpe de direita sentiu, como tantos espanhóis, que Juan Carlos esteve do lado certo da história e salvou a democracia?
Sim, claro. Um por um, ele telefonou a todos os capitães-gerais para não apoiarem Tejero e todos lhe obedeceram. Quando o cunhado, o ex-rei Constantino, que apoiou o golpe dos coronéis na Grécia, lhe telefonou, ele recusou-se a atender e disse à mulher "diz-lhe que vou fazer o contrário de o que ele fez." Foi o momento culminante do reinado e foi também quando começou a queda, pois a partir de então considerou-se imune, acima do bem e do mal.

Durante anos, ouvimos espanhóis que eram republicanos convictos dizerem que era juancarlistas, um reconhecimento do papel do rei na transição do franquismo para a democracia. O fim desse sentimento de admiração coincidiu com a fotografia da caçada ao elefante em 2012, em plena crise económica?
Aquela mentira desvendou todas as mentiras, percebemos que éramos cegos há muitos anos e nunca o perdoámos. A partir daí, a imprensa relatou tudo o que havia silenciado, novas investigações foram iniciadas, os jornais estrangeiros também começaram a falar, ele foi forçado a abdicar e começou o seu infeliz crepúsculo, que o levou ao exílio.

Hoje o rei emérito surge acusado também de ter múltiplas amantes, mas a ideia que tenho é que os espanhóis toleravam essa faceta do monarca, o que não toleraram foi o seu modo de vida demasiado rico e alheado do povo. Concorda?
Num país tão machista como a Espanha, o facto de o rei ser mulherengo era até um ponto a seu favor ... falava-se da quantidade de mulheres com quem havia dormido com admiração, até uma espécie de campeonato se estabeleceu com Júlio Iglesias, para ver qual dos dois tinha mais amantes... Como Sofia também não era muito simpática, ninguém percebeu o que ela devia estar a sofrer. Mas quando soubemos que ele tinha estado imerso em questões de corrupção económica, quando descobrimos sobre a vida de luxo que ele levou em alguns anos de crise económica brutal ... aí retirámos-lhe o nosso carinho, a confiança, a admiração ... Nem mesmo os próprios monárquicos sabiam como defendê-lo.

Pela vivência em Portugal, por saber falar português, pelo seu papel histórico, Juan Carlos sempre foi muito acarinhado pelos portugueses. Como foi a relação dele com Portugal? Apesar da morte trágica de Alfonso, irmão de Juan Carlos, a vida no Estoril foi em geral feliz, ou esse episódio, e as suspeitas sobre quem disparou a pistola, destruíram a unidade da família?
Suspeitas? Não se pode falar de suspeitas, mas de certezas, conto no livro que a arma foi empunhada por Juan Carlos e o irmão, que era uma criança hiperativa, colocou-se no trajeto da bala. Uma única bala entrou no nariz e atingiu o cérebro. Foi-me dito pela única pessoa presente que não pertencia à família, já o escrevi em vários dos meus livros e na altura também foi publicado na imprensa italiana. Foi um acidente, mas a arma estava nas mãos de Juanito. Dom Juan Carlos ama Portugal, que foi o país dos seus primeiros tudo, o primeiro cigarro, a primeira bebida, o primeiro amor, a primeira noite de sexo, fala português perfeitamente, continua a ter os seus amigos de infância (todos foram convidados para o casamento de Felipe) e foi um dos destinos considerados quando ele deixou Espanha no ano passado. Felipe e Letizia também costumam ir incógnitos às quintas dos seus amigos.

De certa forma, ao chamar Juan Carlos e fazer dele sucessor, o generalíssimo Franco salvou a monarquia em Espanha. Como era a relação de Juan Carlos com o ditador?
Foi muito boa. Para Franco, Juan Carlos foi o filho que ele nunca teve, já que só tinha uma filha. "Exibia uma expressão extasiada quando o olhava", diz o seu primo, que esteve presente nos encontros. Quando Juan Carlos foi questionado sobre como lhe parecia Franco para ele depois da primeira audiência, disse "é como se tivesse estado com meu avozinho", frase que nunca proferiu na frente do pai, que odiava o Caudillo.

Num momento em que a unidade de Espanha é desafiada pelos separatismos, sobretudo o catalão, uma monarquia mais respeitada, sem este historial de escândalos, poderia funcionar em favor da conciliação?
O rei reina, mas não governa. Não pode interferir nos assuntos políticos do país ... os atuais reis têm um comportamento impecável, porém, o republicanismo ganha adeptos a cada dia ... não é sobre o povo, mas sobre o sistema. De qualquer forma, uma reforma constitucional nesse sentido seria tão complicada que acho que todas as partes estão cientes de que no momento existem problemas muito mais prementes do que ter um rei ou não, e Felipe pode ficar tranquilo por alguns anos.

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