O cantor canadiano Justin Bieber surpreendeu o mundo da música ao assumir nesta quarta-feira que sofre da doença de Lyme, provocada pela mordedura de uma carraça, que só lhe foi diagnosticada dois anos depois de os sintomas começarem a manifestar-se. "Foram dois anos muito difíceis", admitiu ao site TMZ, prometendo contar tudo num vídeo que será divulgado a 27 de janeiro..Não foi o único a fazê-lo. Horas depois de Bieber, a cantora Avril Lavigne anunciou também que é portadora da doença desde 2014, tendo levado muitos meses a ser diagnosticada. A atriz Ashley Olson fez o mesmo. Tudo porque, explicaram, é importante que as pessoas estejam atentas à doença de Lyme, que é difícil de diagnosticar e que pode ter consequências graves quando abactéria Borrelia burgdorferi transportada pela carraça entra na corrente sanguínea humana..Em Portugal, segundo o relatório de doenças de notificação obrigatória da Direção-Geral da Saúde, foram diagnosticados 53 casos entre 2013 e 2016, tendo sido a região norte a que registou mais casos. A investigadora em microbiologia médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa, Luísa Vieira, garante que tais números estão subdiagnosticados. .Em 2017 e 2018, já foram notificados 20 casos em cada ano, o que revela já um aumento significativo. Em relação ao ano de 2019, os números não estão ainda fechados, segundo referiu ao DN fonte da DGS. Mas os dados preliminares disponíveis no IHMT apontam para cerca de 10% a 12% de casos confirmados. No entanto, desconhece-se os números registados no laboratório do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, que, juntamente com o IHMT, é o centro de referência para o estudo e diagnóstico deste tipo de doença, de declaração obrigatória em Portugal desde 1999..Sobre a subnotificação, a professora universitária Maria Luísa Vieira explicou ao DN que, tendo em conta "a taxa de infeção que estes vetores [parasitas] têm fornecido ao longo dos anos, desde 1996-1997 - quando a doença entrou nos anais da ciência, depois de ter sido muito estudada -, e o nível de exposição dos portugueses às zonas de floresta, quer por atividades profissionais quer por lazer, deveríamos ter anualmente uma prevalência de 30% a 40%. E os números estão muito longe disso"..De acordo com a investigadora, a principal razão de haver esta subnotificação tem que ver com o facto de "a população médica não estar muito desperta para a doença e a população em geral também não"..Maria Luísa Vieira contou ser frequente aparecerem no instituto doentes a referir que alertaram os seus médicos para a hipótese da doença de Lyme, mas simplesmente, quando "são questionados sobre se viajaram, se estiveram nos Estados Unidos ou em zonas onde a doença tem uma prevalência elevada e dizem que não, automaticamente o médico lhes diz para esquecerem, porque em Portugal não há carraças deste tipo, mas há", alerta. Acrescentando: "Por outro lado, mesmo quando há um diagnóstico, os próprios médicos, seja porque têm muita coisa para fazer ou por outras razões, não cumprem o protocolo de notificação obrigatória.".Por exemplo, sublinha ainda, "há situações em que o doente vive durante muito tempo com a bactéria transmitida pela carraça na corrente sanguínea. Esta vai-se alastrando a outros órgãos, podendo afetar, por exemplo, as articulações. Anos mais tarde é-lhe diagnosticada artrite reumatoide, que é uma das consequências da doença de Lyme, mas o médico não vai lembrar-se de notificar a doença à DGS, embora a origem da artrite tenha estado na mordedura de uma carraça infetada com a bactéria borrelia"..Para os especialistas, a grande preocupação são mesmo as consequências graves que a doença pode ter quando não é diagnosticada em fase aguda, inicial, a nível do sistema neurológico, nervoso, articulações e coração. "O mais importante é estar sempre alerta", afirma Maria Luísa Vieira. Tanto a população em geral como os médicos. "Cada vez mais há uma predisposição para as pessoas fazerem exercício ao ar livre, o que é bom, mas, quando se faz ou até quando se vai passear para zonas de floresta com humidade elevada, devemos sempre confirmar se não trouxemos nada agarrado ao corpo que não tivéssemos levado", explica. Ou, então, "quando há sintomas não os desvalorizarem"..A doença de Lyme é uma doença bacteriana transmitida aos seres humanos através da mordedura de uma carraça do género Ixodes. Foi identificada, em 1976, na cidade de Lyme, do estado do Connecticut, nos Estados Unidos, daí o nome, mas só passou a integrar os anais da ciência em 1996-1997. É a infeção transmitida por parasitas mais comum nos EUA, com prevalência em 49 estados. Mais de 90% dos casos ocorrem ao longo da costa nordeste, Maine, Virgínia, Wisconsin, Minnesota e Michigan. Na costa oeste, a maioria dos casos ocorre no norte da Califórnia e do Oregon..A doença de Lyme também tem prevalência nas regiões do hemisfério norte. Na Europa, a incidência é de 65 500 doentes por ano e afeta também a China, o Japão e as regiões da antiga União Soviética..Há países europeus em que as zonas de floresta têm sinalização para a existência deste tipo de carraça. No entanto, a professora universitária salienta que, "felizmente para nós, nem todas as carraças estão infetadas com a bactéria borrelia, daí a doença ser conhecida e diagnosticada também como borreliose de Lyme, porque são só as que se encontram infetadas que transmitem a doença"..Em Portugal, as regiões onde mais predomina são o norte, o centro e o interior algarvio. "Existe nas regiões com muita vegetação, temperaturas amenas e humidade da ordem dos 70% a 80%", pormenorizou a investigadora. A zona da Grande Lisboa, de "Sintra e da Tapada de Mafra são microclimas muito favoráveis à existência deste tipo de parasita", refere..No entanto, e com as alterações climáticas, e aquecimento global, a investigadora alerta para o facto de "se estar a perceber cada vez mais que o parasita se está a adaptar a condições que há 10/15 anos lhe eram desfavoráveis. Hoje, já há parasitas deste tipo em zonas mais quentes". Mais uma vez, salvaguarda, "temos de estar muito atentos. Esta é a máxima para este tipo de doença. Quando se anda por zonas favoráveis à existência deste tipo de carraça, devemos sempre confirmar se transportamos alguma ou não"..Mas pode não ser assim tão simples. A carraça tem tendência para se alojar "na pele, no pescoço, na região dorsal, nuca, axilas, na curva da perna atrás do joelho, nas virilhas, e, muitas vezes, passa despercebida, porque pode ter apenas a dimensão da cabeça de um alfinete", podendo ficar no organismo "mesmo depois do duche e da higiene normal"..O primeiro sintoma da mordedura da carraça pode ser uma mancha avermelhada (eritema migratório), que pode passar ao fim de alguns dias, mas que pode dar outros sintomas, como febre, fadiga, enxaquecas, etc., que, muitas vezes, são confundidos com sintomas gripais, o que também dificulta o seu diagnóstico..A mordedura da carraça tem uma outra particularidade, que "é ser silenciosa, quase anestesia a vítima, por isso não é sentida, sendo só percetível quando aparece a mancha avermelhada"..DOENÇA DE LYME Infogram.Simplesmente, e como refere Maria Luísa Vieira aos seus alunos, "não há doenças, há doentes. Uma coisa é o que nos diz a teoria, outra é o que acontece na realidade. E, sublinha, "nem todos os doentes reagem da mesma maneira. Há situações em que a bactéria só é detetada dez anos depois da mordedura da carraça. Ficou no sistema sanguíneo do doente e só despertou quando, possivelmente, houve uma baixa no seu sistema imunitário"..A investigadora faz ainda outra distinção. "A doença de Lyme não é a mesma doença que a febre da carraça. Esta é também uma doença bacteriana mas provocada por uma carraça do tipo rickettesia , grande e que se aloja em mamíferos, que depois a podem passar ao ser humano"..Apesar de poder ser assustador, Maria Luísa Vieira alerta para o facto de quando uma pessoa deteta uma carraça não dever entrar em pânico. "A indicação que damos é sempre para a retirar. De preferência com algo que proteja os dedos, um lenço de papel, luva, uma folha se estiver no campo, para a retirar no sentido vertical e depois rodá-la para o lado esquerdo, de forma que se consiga retirar toda da pele, não deixando, o que acontece muitas vezes, a peça bocal, que tem os dentes que provocaram a mordedura, agarrada.".O Instituto de Higiene e Medicina Tropical tem um longo historial de investigação e estudo deste tipo doença. Os casos que ali chegam são de referência hospitalar, doentes internados ou por referência do médico de família. A investigadora sublinha o facto de, neste momento, já haver laboratórios de análises com kits para testes rápidos ao sangue para detetar a presença da bactéria transportada pela carraça. Por isso, só é preciso "estar mais alerta, tanto médicos como população".