O sonho olímpico da judoca Rochele Nunes mudou. Quase dois anos depois de trocar o Brasil por Portugal para cumprir o sonho de ir aos Jogos Olímpicos (JO), a número nove do ranking mundial na categoria +78 Kg sonha agora "estar no pódio dos JO". A medalha que a judoca do Benfica espera trazer de Tóquio em 2021 será uma espécie de agradecimento ao país que a acolheu em 2018. O bronze nos Europeus de judo, a 21 de novembro, é um "cheirinho" do que pode acontecer para o ano..Quem olha para ela agora - alta, espadaúda e com mais de cem quilos - não diria que foi no ballet que tudo começou. A menina frágil dos pliés passou a fazer ippons no judo. Tinha uns 8 anos quando trocou os tutus pelos quimonos e começou a revirar adversárias no tatâmi. Vivia na cidade de Canoas (Brasil) e os pais acreditavam que a escola não era suficiente para construir uma boa educação e fazer dos filhos melhores pessoas. Era preciso ter atividades extra, fosse teatro, aulas de inglês ou desporto. "Sempre fui muito elétrica e gostava de fazer todas as atividades extra. Como adorava música e dançar, fui para o ballet, e o meu irmão Renan, como gostava muito de ver os desenhos animados de luta como os Tartarugas Ninja e o Dragon Ball Z, foi para o judo. Depois, já não me lembro bem porquê, mas acho que foi porque o meu horário do ballet não era compatível com o horário dos meus pais, deixei de ir. E foi então que comecei a insistir para fazer judo. Eles deixaram, eu fui, gostei e já não quis sair mais", contou a judoca ao DN..Ainda praticou outros desportos, como andebol e atletismo, além de ter cantado num grupo coral, mas o judo já lhe tinha tomado conta do corpo e da mente. Era no tatâmi que ela se destacava. Ela gostava dessa sensação. Assim que ela e o irmão começaram a dar nas vistas, foram para um dos clubes mais importantes, o Sogipa. Ficaram por 12 anos..Eram inseparáveis. Quando custava mais ir ao treinos, "um puxava o outro". O pior eram as despesas (e as lesões). O judo é um desporto muito respeitado e importante no Brasil, mas não é barato: "Tivemos algumas dificuldades financeiras, não que faltasse comida ou coisas básicas, apenas não tínhamos uma vida de luxo, mas os meus pais faziam tudo para nos dar uma vida melhor e continuar no judo, que é um desporto caro. Além dos quimonos, tínhamos de pagar as deslocações para os torneios, e assim." Para ajudar a pagar as despesas, os pais (Rosangela e Ubirata) chegaram a fazer rifas e churrascos para angariar dinheiro. Ela sentiu-se "afortunada". A decisão dos pais revelou-se acertada: "Talvez eles quisessem apenas dar-me alternativas e não tenham imaginado que eu pudesse chegar tão longe, mas acabou por ser um sonho e um objetivo de vida.".As vitórias foram "acontecendo" e chegou uma altura em que já era difícil ter adversárias à altura. A partir dos 15 anos a coisa passou a ser mais séria, e Rochele chegou a chamada à seleção brasileira. E quando foi à primeira competição internacional e ganhou o ouro, então a coisa ficou "séria de mais". Emocionou-se com o hino e chorou "imenso" no pódio: "Naquele momento eu vi que o esforço compensava e percebi que era o que eu queria fazer para o resto da vida.".Foi nas competições internacionais que conheceu Telma Monteiro. Foram ganhando confiança. Tinham amizades do judo em comum. Um dia, durante um torneio da Confederação Brasileira de Judo, em São Paulo, que reuniu cerca de 200 atletas de cinco países, a judoca portuguesa falou-lhe na possibilidade de vir para Portugal. "O Brasil é um país muito grande e eu tinha passado por algumas lesões e cirurgias. Era a número três e não via um cenário em que pudesse ir aos JO, e falei isso para a Telma numa conversa informal. Eu achei que era brincadeira quando ela disse para ir para Portugal, mas aí as pessoas da Federação Portuguesa de Judo falaram comigo e vi que era a sério", confessou a atleta, que veio conhecer as condições e, por indicação de Telma, acabou por procurar o Benfica. Ficou impressionada. Passados dez dias voltou ao Brasil com a decisão tomada - a de voltar para ficar..Quis ser portuguesa para não "deixar o sonho a meio". Sem a nacionalidade portuguesa não poderia ir aos Jogos Olímpicos. Em Portugal não existia a sua categoria (+ 78 kg), por isso não só não roubou o lugar a ninguém como acrescentou algo. Chegou em agosto de 2018 (tal como Barbara Timo, que se viria a tornar vice-campeã do mundo dos 70 kg, em Tóquio, em 2019, por Portugal), mas a nacionalidade portuguesa e a autorização da Federação Internacional de Judo só aconteceu a 3 de janeiro de 2019..E logo na primeira competição com o quimono português (Telavive, em janeiro de 2019) ganhou uma medalha (bronze). Entre mais de meia dúzia de pódios que fazem dela uma das atletas mais consistentes do ano, Rochele brilhou no Grand Slam de Paris em fevereiro. Em novembro conquistou a primeira medalha numa grande competição, o bronze nos Europeus de judo: "É uma afirmação, uma imagem daquilo que eu quero nos Jogos Olímpicos em 2021.".Rochele tomou-lhe o gosto e quer mais. Desde que subiu ao pódio pela primeira vez em nome da bandeira verde-rubro que percebeu que a possibilidade de uma medalha olímpica era "real". Desde esse dia o objetivo passou a ser o pódio e não a simples presença. E se for no primeiro lugar e frente à cubana Ortiz (trimedalhada olímpica), melhor..Com a mudança dos JO de Pequim 2020 para 2021 devido à pandemia da covid-19, o apuramento olímpico ainda não está fechado, mas ela está "quase qualificada", uma vez que é a número nove do ranking mundial. Apesar de o ano estar a ser atípico para todo o mundo, Rochele não parou de treinar. Quando começou a quarentena (março), os judocas do Benfica juntaram-se numa casa e cumpriram o isolamento juntos, o que lhes permitiu continuar a treinar. Depois passou quase três meses no Centro de Alto Rendimento de Coimbra. Isso talvez tenha feito a diferença e ajude a explicar o sucesso nos Europeus, assim como a estabilidade emocional. O marido juntou-se a ela em Portugal e o "coração ficou mais calmo"..E como será ouvir A Portuguesa? "Eu tenho muito orgulho do lugar de onde eu vim, mas Portugal conquistou tanto o meu coração. Desde a primeira competição que sei o hino nacional. Eu já imaginava que ia ouvir o hino e não quis passar vergonha de não saber. Nos tempos livres procurei saber mais da história de Portugal, do judo português e dos atletas do país para entender um pouco mais a cultura desportiva deste país que me acolheu tão bem. Até já simulei uma final olímpica com uma brasileira e disse-lhe que eu ficaria com o ouro", respondeu a judoca..Segundo Rochele Nunes, a nova geração do judo português tem "tido muito sucesso" e "dá garantias para o futuro", mas não é fácil encontrar outra Telma Monteiro. "Depois de conviver mais com ela percebi o porquê de ela ser a Telma Monteiro. Nada é por acaso, a dedicação dela, dá 100% no tatâmi, é supertalentosa e uma superatleta. Ela já fez história no judo português e mundial. Vai demorar para aparecer um atleta que faça o que a Telma já fez no judo", elogiou Rochele, que viu Telma vencer o bronze nos Jogos do Rio 2016. "Agora eu sei que basta ela acreditar para ela conseguir, mas gostava que todos conhecessem o lado divertido dela.".A convivência com a judoca portuguesa fez a brasileira, natural de Pelotas (19 de junho de 1989), aumentar a confiança nela própria, mesmo nos piores momentos. No ano passado, o Grand Slam de Budapeste não lhe correu bem e ficou fora das medalhas. Se já estava mal com a derrota, ficou "sem chão" quando recebeu uma mensagem anónima que dizia o seguinte: "Vergonha é o que Brasil e Portugal sentem de você! Foi para a Europa, mas devia ir para o inferno MACACA DE M****!" Na "hora da raiva" ela denunciou: "Aconteceu, denunciei, mas eu como atleta sou mais do que esse episódio.".Como se diz em Portugal, teve de ganhar calo para lidar com os haters e não se deixar abater: "Sou mais importante do que qualquer tipo de preconceito. Nunca me senti diferente por ser preta, ser mais pesada ou brasileira." Mas nunca sentiu o peso dessas palavras que disse, "preta, pesada, brasileira"? "Não. Aliás eu sempre me destaquei no judo por ser isso e acredito que o meu biótipo possa ser exemplo para outras atletas, para que saibam que podem chegar lá", respondeu a medalha de bronze nos Europeus, para quem "o judo também é dor". Que o digam as suas mãos e os joelhos, que já passaram por sete cirurgias!.A mudança de nacionalidade tem crescido substancialmente no judo mundial nos últimos anos, e Portugal não é exceção. Além de Rochele Nunes e Bárbara Timo, a seleção nacional de judo tem ainda mais três atletas naturalizados: Sergiu Oleinic (Moldávia), Anri Egutidze (Geórgia) e Yahima Ramírez (Cuba)..Jorge Fonseca é um caso um pouco diferente: nascido em São Tomé e Príncipe a 30 de outubro de 1992, chegou a Portugal com 11 anos. Ainda andou a jogar à bola com os outros miúdos na rua, "mas não tinha jeito nenhum" e começou a praticar judo numa escola na Damaia. Em 2019 fez história ao sagrar-se campeão do mundo na categoria -100 kg..Fonseca é a grande referência do judo a par de Telma Monteiro, a mais medalhada de sempre da modalidade em Portugal e a segunda a nível mundial.