Percorrem entre cinco e sete mil quilómetros à boleia das correntes oceânicas até chegarem aos estuários e às lagoas costeiras da Europa e de África. Milhões delas acabam como iguaria nas refeições em Espanha e em França, mas especialmente nas aquaculturas de países asiáticos como a China, a Tailândia ou o Vietname, onde se chega a pagar 2500 euros por um quilo deste peixe na sua fase juvenil - mais tarde transformar-se-á em Anguilla anguilla, ou enguia-europeia - quando em Portugal a mesma quantidade rende 200 euros ao pescador..Estamos a falar das enguias bebés, também conhecidas como meixão, que na sua forma de larva saem do mar dos Sargaços (uma região no meio do Atlântico Norte onde ocorre a desova das enguias adultas), sendo transportadas pelas correntes até a sua área de distribuição na Europa e no norte de África. Na viagem, que pode durar de um a dois anos, transformam-se e entram nos estuários e lagoas costeiras já com a forma típica de uma enguia, mas apenas com 4 a 8 centímetros, e com o corpo transparente. Devido ao seu aspeto de transparência também são conhecidas como enguias-de-vidro..Com uma cotação que sobe dez vezes entre o momento da pesca - ilegal em Portugal, onde se pode ter esta atividade no rio Minho apenas entre novembro e fevereiro - e a venda no mercado asiático, a captura do meixão é bastante apetecível para os grupos criminosos internacionais que atuam no país e que têm nesta atividade um negócio altamente lucrativo..A deteção da atividade ilegal é difícil pois as redes de malha muito fina, designadas por botirões, são deixadas submersas nas águas em locais que só os pescadores sabem onde estão, o que dificulta as detenções por flagrante delito..É por isso que uma operação como a Freshwater, da Guarda Nacional Republicana, assume uma importância internacional no combate a este tráfico. A comunicação social espanhola dá destaque à primeira condenação de uma rede de contrabando de meixão, como aconteceu no início de junho quando cinco pessoas e três empresas foram condenados a multas superiores a 1,5 milhões de euros e a penas - no caso dos indivíduos - de seis anos de prisão..mexia Infogram.Em Portugal ainda não houve nenhuma condenação com penas de prisão, até porque a moldura penal é pequena - o crime em que incorre quem pesca de forma ilegal e faz contrabando é o de danos contra a natureza, previsto no artigo 278.º do Código Penal com penas que podem ir de multa a cinco anos de prisão, de acordo com vários pressupostos..É este o enquadramento legal em que podem incorrer os 30 detidos na já referida ação Freshwater,que se desenrolou em vários pontos da costa portuguesa ao longo dos últimos meses. Nestas operações, A GNR apreendeu mais de 330 quilos de meixão, seis carros, um barco, mais de cem mil euros em dinheiro, num valor total superior a 2,3 milhões de euros..As três dezenas de pessoas identificadas pela GNR são oriundas de vários países - Portugal, Taiwan, China, EUA, Malásia, Coreia do Sul -, o que mostra o carácter internacional das redes criminosas que operam neste mercado ilegal..Este foi o caso mais relevante obtido nas investigações que entre janeiro de 2018 e abril de 2019 levaram a Guarda a registar 122 crimes, tendo feito 65 detenções e identificado mais de 144 pessoas. Nos dados oficiais fornecidos ao DN acrescenta-se que foram "desenvolvidas 394 ações de fiscalização e elaborados 165 autos de contraordenação, com a apreensão de mais de uma tonelada de meixão, a maior parte detetada nas zonas de bacia dos rios Minho, Cávado, Mondego, Lis, Tejo, Sado e Mira"..Proibido exportar para fora da Europa.A captura de enguias bebés e a sua venda na Europa não é um negócio proibido. Em Portugal pode-se pescar meixão no rio Minho entre novembro e fevereiro, e em Espanha há zonas onde se pode pescar e outras onde não é permitido, apesar de este país, tal como França, terem tradição de consumo de meixão..O grande declínio da população desde os anos 1990 levou a Comissão Europeia a adotar o regulamento n.º 1100/2007, que "obrigou os Estados membros da UE a fazer planos de gestão de enguia para a recuperação da enguia-europeia", como explicou ao DN Isabel Domingos, investigadora do Centro de Ciências do Mar e Ambiente (MARE) e docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, uma das maiores especialistas nacionais nesta espécie. Adiantou, ainda, que "a comercialização para repovoamento na União Europeia é permitida, e alguns Estados membros dependem deste meixão para cumprir os objetivos dos seus planos de gestão de enguia"..Já a sua exportação para fora da União Europeia é proibida..Lembrando que a enguia-europeia está listada no anexo II da Convenção Cites - Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção que atribui graus de proteção a espécies que estão ameaçadas, apesar de não se encontrarem em perigo de extinção -, Isabel Domingos reforça que a pesca ilegal de meixão é "brutal". Frisa ainda que todos os anos no Grupo de Trabalho sobre a Enguia (WGEEL) do Conselho Internacional para a Exploração do Mar (CIEM) é avaliado o estado da população e que os resultados das medidas adotadas no sentido de proteger/recuperar a população da enguia-europeia são ainda pouco visíveis. "Todos os anos analisamos o estado da população e, apesar de haver ligeiros sinais de aumento do recrutamento, esse aumento apresenta flutuações sem que uma tendência crescente continuada seja notada", refere..Um problema que é agravado pela elevada procura de enguia bebé, principalmente para o mercado asiático de aquacultura, que se agravou com o declínio da enguia-japonesa produzida na China. A pesca de meixão da enguia-europeia aumentou e fez que Portugal tenha entrado na rota dos grupos criminosos que obtêm grandes lucros com este contrabando..O interesse é tão grande que as redes chinesas têm células espalhadas pela Europa que servem também como correios para o transporte do meixão para China, Vietname, Tailândia ou Filipinas, por exemplo. Em Portugal, uma das entidades que têm responsabilidades na fiscalização ambiental é o Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente da GNR, cujos militares, com a colaboração de diversas estruturas da Guarda e de outras entidades nacionais, fazem também a investigação deste tráfico..E foi esse trabalho que lhes permitiu detetar e desmantelar a organização que operava em Portugal - na já referida operação Freshwater -, "reconstituir" a forma como esses grupos trabalham e ter a certeza de que em Portugal apenas os pescadores são nacionais, pois os restantes elementos da rede vêm de fora do país.."Na base estão os pescadores que recolhem o meixão vivo, depois coordenam-se com os elementos que o transportam para ser conservado em outro local, de onde sai para o mercado europeu e asiático", explicou ao DN o tenente-coronel José Vieira. Segundo o chefe da Divisão da Natureza e do Ambiente da GNR, o contrabando de enguia bebé está de tal forma organizado que os intermediários têm tanques em casas e/ou anexos onde colocam bombas de oxigénio, equipamento para purificar a água, ou seja, tudo o que é necessário para manter o meixão vivo..A forma como depois é transportado para fora de Portugal varia: "Pode ser por via aérea ou rodoviária. No primeiro caso, o meixão segue dentro de malas em sacos com água e à temperatura certa para se manter vivo. Quando transportado por carro, vai em tanques especiais com filtros e bombas de oxigenação.".Alto lucro com baixo risco.Este tráfico tem assumido uma importância tal que a Europol também já foi chamada a participar em várias ações com as polícias de diversos países. Ao DN, José António Alfaro Moreno, especialista em crimes ambientais desta polícia e o responsável pela coordenação da luta contra o tráfico de enguias, recorda que a Europol lançou uma operação contra o tráfico de enguias bebés em 2016 "após um pedido da Comissão Europeia e da CITES devido à situação crítica da população de Anguilla anguilla. No início, os países envolvidos foram Espanha, França, Portugal e Reino Unido. Hoje também contamos com a Alemanha, a Itália, a Holanda e a Suécia"..Um tráfico que é rentável pois, como lembra, na Ásia o lucro final deste negócio pode ser "até sete euros por cada euro investido. O que o torna atraente para os grupos devido ao facto de se poder ter alto lucro com baixo risco. Na China são alimentadas e quando têm um peso normal (0,6 kg) são abatidas e vendidas como enguia autóctone em vez de engui- europeia, que é proibida fora da União Europeia"..José Moreno lembra que a pesca desta espécie não é proibida em todos os países. "O que é totalmente proibido é a exportação para além dos limites da UE, e só das enguias-europeias. A UE estabeleceu uma cota zero para essas exportações, mas não para o comércio interno. Apenas é proibida dependendo do nível nacional e até regional. Por exemplo, em Portugal é permitida exclusivamente no rio Minho. Em Espanha, a pesca é legal nalgumas regiões e proibida noutras. Este facto dificulta as ações de fiscalização pois os pescadores ilegais tentam introduzir enguias bebés provenientes de zonas ilegais no mercado ilegal. As enguias bebés pescadas de forma legal têm dois destinos finais: a aquicultura e a reintrodução. Portanto, o tráfico é a terceira fase.".O impacte no ecossistema.A redução do stock de enguia-europeia tem várias causas, que incluem a sobrepesca, as mudanças nas correntes oceânicas devido às alterações climáticas e a presença de barragens que reduzem o habitat para crescimento, na sua fase de vida continental. "As correntes oceânicas transportam as larvas para cá [desde o mar dos Sargaços], e estas sofrem uma metamorfose quando se aproximam da costa, transformando-se em meixão. Depois entram nos estuários e nas lagoas costeiras onde adquirem pigmentação e originam as enguias amarelas que todos conhecemos. Passados alguns anos transformam-se em enguias prateadas e voltam ao mar dos Sargaços, onde se reproduzem e morrem", explica ao DN Isabel Domingos, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e investigadora do MARE - Centro de Ciências do Mar e do Ambiente..Para tentar alterar a tendência de declínio da população, a investigadora lembra que têm sido adotadas várias medidas como a proibição da pesca, a desobstrução dos cursos de água - "com a criação de passagens para as enguias" -, mas também refere que as barragens com turbinas provocam grande mortalidade entre a espécie quando as enguias tentam descer os rios e regressar ao oceano para se reproduzir "desaconselhando a instalação de passagens para enguias neste tipo de barragens"..E a redução da população de enguia tem uma grande influência nos ecossistemas, como refere: "A perda de uma espécie é sempre preocupante para a biodiversidade, mas no caso do meixão a pesca ilegal nos estuários tem um elevado impacte no ecossistema pois são zonas de viveiros de várias espécies marinhas que os procuram para se alimentar e proteger. As redes para o meixão têm uma malha muito fina e apanham todas as espécies - larvas de peixe e crustáceos - que acabam por não contribuir para a reposição de stocks costeiros. Além disso, todas as espécies têm uma posição nas cadeias tróficas dos ecossistemas e a perda de uma espécie tem, necessariamente, repercussões na estrutura e no funcionamento desses ecossistemas", conclui.