Djokovic e as bombas da NATO

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Talvez não se associe de imediato o recente episódio australiano do tenista Novak Djokovic com bombardeamentos da NATO, mas aquilo que para grande parte do mundo pareceu um despropositado braço-de-ferro entre um campeão que não gosta de regras (nem sequer as sobre vacinação contra a covid-19) e umas autoridades nacionais que deram alegremente o dito por não dito foi visto na Sérvia como mais uma afronta ao país.

É certo que Djokovic é uma figura extremamente querida no seu país (e não só) por ser o número um mundial do ténis e também pela generosidade da sua fundação, sobretudo no apoio à construção de escolas. Só que toda a polémica em torno da possibilidade de jogar no Open da Austrália sem estar vacinado, com o visto de entrada a ser retirado ao fim de 12 dias e a expulsão ordenada, desencadeou uma reação de solidariedade tanto a nível oficial como popular em que contou muito também o orgulho nacional dos sérvios. E daí a alusão à NATO e aos bombardeamentos que em 1999 puseram o Kosovo, província da Sérvia de maioria albanesa, no caminho para a independência, mais uma intervenção ocidental a somar-se a outras que resultaram, anos antes, em derrotas dos sérvios na Croácia e na Bósnia e Herzegovina, duas repúblicas da ex-Jugoslávia onde eram minorias substanciais, sobretudo na última.

Principais promotores históricos de uma união dos povos eslavos do sul, primeiro sob a forma de uma monarquia e depois através de uma federação comunista, os sérvios acabaram por ser os grandes derrotados nas guerras que marcaram o fim da Jugoslávia nos anos 1990, até por serem aqueles que a tentaram preservar. E apesar de vários testemunhos posteriores apontarem sérias responsabilidades nas atrocidades também a outras nacionalidades em conflito, durante as chamadas Guerras da Ex-Jugoslávia, foram os sérvios o lado visto como agressor, sobretudo no Ocidente, conceito que vai muito para lá da geografia e que envolve além da Europa Ocidental e dos Estados Unidos certamente também a Austrália. Djokovic, cuja família tem raízes no Kosovo, vivia em Belgrado quando as bombas da NATO caíam sobre a capital sérvia. Tinha 12 anos e, apesar de desportista promissor, poucos adivinhariam que seria um dia o número um mundial.

O tom nacionalista dos jornais sérvios entretanto moderou-se, com alguns títulos a dizerem a Djokovic que tem de escolher entre a carreira e a vacina, sobretudo porque a França já prometeu fechar também as portas de Roland Garros. E é este sentido de pragmatismo sérvio, mesmo quando se sentem injustiçados com ou sem razão, que deveria ser tido em conta num outro capítulo da relação entre o país e o Ocidente, neste caso a parte do Ocidente que dá pelo nome de União Europeia.

Mesmo com o Kosovo por resolver (proclamação de independência em 2008, mas cinco dos 27 países da UE ainda sem a reconhecer, tal como Rússia e China, e portanto ausência de assento na ONU), um verdadeiro sinal de boa vontade com a Sérvia seria o acelerar do processo de integração europeia, afinal Eslovénia e Croácia já integraram o clube há uns anos e isso foi importante em ambas para a construção de um destino pós-jugoslavo.

Que acelerar essa integração passa por um maior esforço para entender a mentalidade sérvia é evidente: estamos a falar de um povo com um sentido muito forte da história, um povo que se orgulha de ter sido o primeiro a revoltar-se nos Balcãs contra os turcos, também de ter contribuído generosamente para as fileiras dos partisans jugoslavos que derrotaram os nazis. Ainda há dias, numa leitura sobre Genghis Khan e os seus sucessores, descobri com alguma surpresa uma batalha de Tamerlão em que este, vitorioso momentaneamente sobre o Império Otomano, descreveu os guerreiros sérvios como os mais bravos dos combatentes no lado inimigo. Isto foi no início do século XV, mas o povo de Djokovic é um daqueles que gostam de ter memória.

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