Primeiro, foi o Livre, com Joacine Katar Moreira. Nesta semana foi o PAN, com Francisco Guerreiro. Em poucos meses, os dois partidos perderam os assentos, na Assembleia da República e no Parlamento Europeu, assumidos a título próprio pelos dois eleitos. Um e outro caso, como outros anteriores, não levantam qualquer dúvida legal: a lei determina que o mandato pertence ao deputado e não aos partidos e só os primeiros podem assumir a renúncia. Mas a clareza jurídica não tem impedido que, a cada caso, desabe uma chuva de críticas sobre os deputados - nacionais ou europeus - que optam por manter-se no lugar..Se os eleitos têm legitimidade formal para se manterem nos cargos, questão diferente é a legitimidade política - um ponto a que o próprio quadro legal parece dar eco, em particular na Assembleia da República, ao limitar de forma fortíssima a capacidade de intervenção dos deputados que não representam qualquer partido. "Os deputados independentes estão muito diminuídos. Mesmo no quadro parlamentar é claro que há um privilégio à representação partidária", sustenta António Costa Pinto, investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, lembrando que o sistema político português, desde os primeiros anos da democracia, e sem grandes alterações ao longo do tempo, dá "grande centralidade aos partidos políticos".."Embora seja legal, a democracia portuguesa dá muito pouca legitimidade a que um candidato dissidente possa ficar no Parlamento nacional ou no Parlamento Europeu", defende o politólogo, mas sublinhando que há diferenças relevantes entre os dois casos mais recentes: "Joacine Katar Moreira passou por umas primárias abertas quer aos militantes quer aos simpatizantes do partido e foi selecionada como candidata. É o que se pode chamar o efeito perverso da democratização interna dos partidos. As listas foram decididas em eleições internas, o que lhe dá alguma legitimidade política própria para ficar no cargo." E há outro fator. "No caso do Livre, o seu principal dirigente já tinha sido candidato e não tinha sido eleito. A dinâmica eleitoral de Joacine é um segundo elemento a favor da sua legitimidade política. Isso não aconteceu no PAN, onde o candidato europeu não deu nenhum tónus diferenciado ao partido. E é um candidato que sai da direção" do partido (pertencia à Comissão Política Nacional).."Não é o fim do mundo".Apanhado de surpresa pela desvinculação do seu único eurodeputado, o PAN veio defender que "atendendo a que a eleição resulta de uma proposta e do trabalho coletivo do partido, seria expectável que esta posição fosse entregue ao partido, numa linha de coerência e de respeito pelo eleitorado". Nas redes sociais há votantes que fazem eco desta leitura, considerando que o seu voto foi usurpado pelos candidatos. Faria sentido reequacionar o equilíbrio entre candidatos e partidos?.José Ribeiro e Castro, antigo líder do CDS e promotor de uma petição em defesa de uma profunda reforma do sistema político, que está atualmente na Assembleia da República, responde com um rotundo "não". "Isso liquidaria qualquer autonomia dos deputados. Serei sempre contra qualquer alteração que acentue a autoridade dos partidos sobre os eleitos. O nosso sistema sofre do mal oposto", diz o também ex-deputado, criticando a "infantilização" da vida parlamentar, com deputados sem voz própria que se limitam a obedecer às ordens das direções..Estes casos-limite não são exemplares, diz José Ribeiro e Castro, mas são um mal menor perante a hipótese contrária de os partidos terem uma palavra a dizer sobre o mandato dos deputados. "Estes casos não deviam acontecer, mas acontecem em todos os parlamentos. É chato, os eleitos e os partidos deveriam ter agido com mais cautela, mas não é o fim do mundo.".Com diferentes motivações e enquadramentos (Joacine viu o Livre retirar-lhe a confiança política, Francisco Guerreiro sai de moto-próprio por considerar que o PAN se afastou dos seus princípios fundadores), a rutura entre partidos e deputados está longe de ser um exclusivo dos pequenos partidos, mas é nestes casos que acaba por assumir maiores proporções. "São partidos com uma consolidação ainda relativamente frágil", diz António Costa Pinto, que dá outro exemplo de um pequeno partido que bem pode ter evitado um cenário de crise interna: "A Iniciativa Liberal muito rapidamente evitou a bicefalia de ter apenas um deputado no Parlamento que não coincidia com a presidência, o que é uma situação perigosa para um pequeno partido."."Dissidência provoca estigma".Por outro lado, a dissidência é uma situação que "provoca grande estigma e, na maior parte dos casos, estes deputados não têm qualquer capacidade política que os leve, por exemplo, a criar um partido político autónomo", diz António Costa Pinto, sublinhando que estes episódios "são associados pela opinião pública a politiquice, a uma dinâmica de traição e oportunismo". Por outro lado, a "capacidade de intervenção destes intervenientes políticos é muito escassa", o que os leva a perder protagonismo ao deixar as fileiras dos partidos pelo qual foram eleitos..Mas a situação é diferente na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu. Ao passar a deputada não inscrita, Joacine Katar Moreira não só perdeu - e muito - na capacidade de intervenção, como viu bastante reduzida a subvenção que é atribuída aos deputados: Joacine recebe menos 60 mil euros anuais, destinadas a despesas do gabinete, por já não representar um partido (passou de 117 mil euros para 57 mil). O Livre, por seu lado, manteve sem cortes a subvenção de cerca de 165 mil euros que recebe anualmente pelos votos conquistados em 2019..Já em Bruxelas o panorama é diferente. No Parlamento Europeu, as regras vão no sentido de promover a autonomia dos deputados em relação aos partidos, pelo que a quebra de ligação não se traduz na perda de qualquer prerrogativa dos deputados - Ribeiro e Castro diz que "o Parlamento Europeu tem muitos defeitos, mas dá dez a zero aos parlamentos nacionais em matéria de participação dos deputados"..E isso traduz-se quer na capacidade de intervenção, que não é limitada - e os deputados mantêm-se ou mudam de bancada, se o entenderem -, quer no apoio financeiro aos eleitos, que mantêm intacta a verba para as despesas de gabinete (cerca de 5000 euros/mês). A distribuição de verbas que é feita pelos grupos parlamentares aos membros da bancada (que é variável, mas ascende também a alguns milhares de euros), para a realização de iniciativas ou despesas com staff, também não sofre alterações..Deputados versus partidos, uma rutura pouco comum.No Parlamento Europeu, o primeiro eurodeputado a deixar o partido foi Francisco Lucas Pires, que deixou o CDS em novembro de 1991, em rota de colisão com a liderança eurocética de Manuel Monteiro. Depois disso é preciso chegar a 2011 para encontrar um episódio semelhante, com o historiador Rui Tavares - eleito como independente, em 2009, nas listas do BE - a passar também a independente. Outro caso que fez correr muita tinta foi o de Marinho e Pinto, eleito nas listas do MPT, mas que rapidamente deixou o partido..No caso do Parlamento português, a lista é bastante mais extensa, mas só considerando os primeiros tempos da democracia. Nas últimas duas décadas houve apenas quatro casos: Luísa Mesquita recusou deixar o Parlamento por indicação do PCP e passou a deputada não inscrita em 2007; o deputado José Paulo Carvalho deixou a bancada do CDS em 2008; na última legislatura, Paulo Trigo Pereira, eleito como independente nas listas do PS, também deixou o grupo parlamentar socialista.