Richard Zimler inicia este seu "novo" romance com um prefácio em que explica o atraso de 20 anos na publicação em Portugal de Insubmissos. O escritor, que vive no Porto, não se arrependeu em ter aceitado o conselho para o adiar: "De maneira nenhuma, a Maria da Piedade Ferreira, a minha editora, então na Quetzal Editores, queria proteger-me. E estou-lhe grato.".As razões eram claras à época, justifica: "Ela conhecia muito bem os meios culturais, literários e políticos em Portugal e receava represálias. Eu sabia pouco sobre o país, pois só tinha chegado em 1990. Quando enumerou as dificuldades que eu podia enfrentar e como é que os elementos mais conservadores e preconceituosos da sociedade portuguesa reagiriam negativamente a um romance que explorava alguns temas tabus, decidi que não podia arriscar a minha carreira como escritor e a carreira do Alexandre [Quintanilha] como cientista e professor.".O principal receio de Zimler era que o Ministério da Administração Interna decidisse não lhe renovar o seu visto: "Eu estava numa posição muito vulnerável, pois não tinha nacionalidade portuguesa em 1996. Só a consegui em 2002 e se o ministério tivesse decidido não renovar o meu visto, teríamos de vender o apartamento, sair de Portugal e tentar conseguir emprego num outro país. Hoje em dia, a nossa reação pode parecer um pouco paranoica, mas na realidade não era. Nos anos 1990, o país ainda vivia a herança de quase 300 anos de uma ditadura religiosa - a Inquisição - e 40 anos do Estado Novo. O país tinha evoluído pouco em relação ao tratamento de minorias, homossexuais, luso-africanos, ciganos, etc.".Acrescenta: "Tínhamos muitos amigos homossexuais - alguns escritores conhecidos - que não arriscavam assumir-se. Os poucos que se assumiram sofreram represálias, até chantagens e violência física. E alguns perderam amigos e empregos. A minha decisão de não publicar o livro foi mais uma prova de que às vezes surgem na nossa vida problemas que não têm uma solução perfeita. Qualquer decisão que tomarmos vai ter consequências lamentáveis. Daí ter escolhido o rumo menos doloroso. Tinha de sacrificar um projeto literário para continuar a viver em Portugal.".Citaçãocitacao"A minha escrita seguiu outro rumo nos anos a seguir a 'Insubmissos'. Fiquei fascinado pela história dos judeus portugueses e pela possibilidade de criar o meu Ciclo Sefardita.".Em 1996, o Insubmissos saiu em Inglaterra e EUA. Os leitores desses países são mais permissivos em relação ao perfil dos escritores? Nos anos 1980 e 1990, havia uma profunda abertura nos EUA e na Grã-Bretanha em relação à orientação sexual. Esta evolução fez que a homossexualidade começasse a ser debatida em público duma forma respeitosa e inteligente pela primeira vez. Ser gay começou a ser considerado perfeitamente normal pela maioria das pessoas das grandes cidades, como São Francisco, Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Manchester... Penso que a grande maioria dos leitores de romances sérios - homens e mulheres interessadas em literatura e cultura - queria ler obras com personagens gays e lésbicas, ou de outras minorias - judeus, negros, etc... Felizmente, os heterossexuais nestes dois países começavam a libertar-se dos seus preconceitos. Daí que, em 1996, Insubmissos podia encontrar leitores preparados para seguir a narrativa sem preconceitos. Embora menos do que eu desejava, pois a obra foi publicada por uma editora pequena com uma distribuição fraca. Nesse sentido, o mundo editorial não tinha evoluído tão rapidamente como o resto da sociedade. Ainda era muito conservador. Outro elemento importante: o surgimento da sida nesses anos fez que os americanos e os britânicos heterossexuais se vissem obrigados a decidir entre apoiar e simpatizar com a comunidade gay da sua região ou cidade ou virar as costas e abafar a sua própria compreensão. A crise sanitária revelou o melhor e o pior nas pessoas. Penso que foi por isso que Insubmissos, de uma certa forma, despertou o melhor das pessoas, embora eu não estivesse consciente disso na altura. Mas não estou arrependido por ter feito esta opção, pois quero leitores inteligentes e sensíveis, que se deixam possuir por empatia e compreensão. Arrependeu-se entretanto de não "ter forçado" a publicação em Portugal antes? A minha escrita seguiu outro rumo nos anos a seguir a Insubmissos. Fiquei fascinado pela história dos judeus portugueses e pela possibilidade de criar o meu Ciclo Sefardita - ou seja, uma série de romances sobre diferentes ramos e gerações da família Zarco. Comecei este projeto com O Último Cabalista de Lisboa e já escrevi quatro outras obras do ciclo, a mais recente intitulada, Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco. Ia esperando o momento certo para tirar Insubmissos da gaveta e publicá-lo. Mas esse momento nunca chegou, pois estava sempre mais interessado no próximo romance. Penso também que me faltava a confiança de que as pessoas atuais pudessem interessar-se por um romance que decorre nos anos 1990, sobre um jovem muito talentoso que fica seropositivo com VIH. Só quando a covid-19 surgiu é que comecei a ter a confiança de que os leitores atuais, incluindo os jovens adultos, compreenderiam o narrador e as outras personagens - sobretudo o seu medo da doença e da morte - pois hoje em dia todos nós vivemos sob o stress de uma pandemia. Nos últimos meses, tivemos de modificar a nossa maneira de pensar sobre os riscos que aceitamos ou não aceitamos, e o nosso papel na sociedade - por exemplo, qual é a nossa responsabilidade perante o outro. Pensamos todos os dias num vírus e nas consequências de ficar infetados, tal como nos anos 1990. Em maio, durante a quarentena, pensei: a covid-19 fez que leitores em Lisboa, no Porto e em todo o país, mesmo nas aldeias mais pequenas, possam compreender as minhas personagens e como é que a morte e os fantasmas de amigos mortos estão a assombrar os seus pensamentos e emoções. Daí ter-me convencido de que era a altura certa para publicar Insubmissos. Felizmente, os editores da Porto Editora concordaram..Como é confrontar-se com uma escrita de há quase três décadas? Estava muito ansioso quando comecei a ler o livro pela primeira vez há 24 anos. Pois não sou o mesmo Richard Zimler que escreveu o livro em 1994 e 1995. Sou mais experiente e maduro e estou muito mais em paz com a minha própria pessoa. Daí um problema: o que faria se a escrita não fosse de alta qualidade? Ou se fosse um livro deprimente? A minha decisão - que não revelei a ninguém - foi que não deixaria o livro ser publicado e reembolsava a Porto Editora pela tradução. Felizmente, descobri uma narrativa dinâmica que me prendeu e, sobretudo, personagens que me emocionavam profundamente. E não era deprimente! Antes pelo contrário, é um grito de paixão e de vida. Apercebi-me de que o narrador - o professor de guitarra do jovem seropositivo, o António - tem muita graça. Utiliza um humor cáustico e às vezes absurdo para animar os outros mas também para manter o seu próprio espírito, pois perdeu muitos amigos e um irmão nos EUA - vítimas de sida - antes de mudar para Portugal. E é uma pessoa com imensa força interior ao mesmo tempo, pois faz um sacrifício comovente e complicado para ajudar o seu aluno. Temos de ter em mente que a sida nessa altura era uma sentença de morte, de que o António provavelmente morreria dentro de dez anos. O professor percebe que o jovem vai ter pouco tempo para desenvolver a carreira profissional que merece. Compreende também que precisará de um melhor professor de guitarra - um virtuoso - para fazer progressos rapidamente. Daí, faz uma viagem a Paris com o António e com o pai dele, para convencer um guitarrista famoso a aceitar o jovem como aluno. Gosto muito dessa parte da história - de um road movie com três personagens em conflito e à procura de redenção. Descobri também que era um romance que explorava temas tabus de uma forma muito honesta e frontal. Orgulho-me disso. Por exemplo, o pai do António recusa aceitar a homossexualidade do filho. Acha que é vergonhosa. Obviamente, isso cria um conflito enorme entre os dois. O julgamento do pai representa um segundo trauma para o António. E para o pai representa um constrangimento enorme, pois vê que o filho está a sofrer e quer ajudá-lo. Mas não pode, pois é impossível ajudar um jovem cuja sexualidade não se aceita. Será que o seu amor pelo filho vai vencer os preconceitos e também o seu próprio medo da doença e da morte..Teve de alterar alguma parte? Nenhum livro é perfeito, claro, e também descobri aspetos do livro que tive de emendar - cenas demasiada repetitivas e outras em que usei uma linguagem já envelhecida ou demasiada provocadora. Eu e a minha editora, Sofia Fraga, fizemos as modificações necessárias para tornar a narrativa mais fluida e concisa e poderosa. Recordei também que o historiador Helder Pacheco lera o livro quando saiu em Inglaterra e disse-me várias vezes que admirava muito as descrições das ruas e das pessoas do Porto. Eu tinha-me esquecido desse aspeto do romance, foi uma descoberta muito positiva..Até que ponto o livro é autobiográfico é uma das perguntas que surgem de imediato ao leitor. Era o que pretendia ou aconteceu? O enredo tem alguns elementos autobiográficos. Por exemplo, estudei guitarra clássica durante muitos anos. E tocava bastante bem. Por isso podia explorar a paixão do António pela sua música de uma forma realista e interessante. E deu-me a possibilidade de explorar a relação professor-aluno. Também tive um pai que não aceitava a minha sexualidade. Daí compreender muito bem o confito que gera. Mas o enredo do livro - a viagem a Paris - não é autobiográfico. Ainda por cima, sou bastante diferente do narrador, pois nunca estive tão envolvido com a comunidade gay como ele. Sou mais solitário. Gosto muito de estar sozinho - de escrever, ler, ver jogos da NBA na televisão. O professor é muito mais social. Daí ter sofrido mais do que eu, que tive muitos amigos que morreram de sida. Penso que as emoções são o aspeto mais autobiográfico do livro; por exemplo, o desejo profundo por parte de António de conseguir uma carreira como músico. Durante muitos anos pensei que não ia viver até aos 40, pois podia ter apanhado o vírus. Vivia num estado de pânico constante durante a fase pior da doença do meu irmão, no fim dos anos 80. É muito difícil testemunhar a morte de um jovem..Está a referir-se ao seu irmão? Sim, o meu irmão morreu aos 35 anos, depois de sofrer infeções incapacitantes, como a toxoplasmose. Tive que gerir a doença dele nos últimos meses, pois perdeu muitas capacidades físicas e psicológicas. Lidei diariamente com os médicos, com investigadores científicos, com amigos e com os nossos pais. Como a revolta do meu irmão era profunda, tentei também animá-lo e dar-lhe esperança. Quando ele faleceu - no dia 6 de maio de 1989 - fiquei completamente desfeito. Não consegui retomar a minha vida. Nessa altura, os residentes da região de São Francisco só falavam de sida. Por isso, não aguentava reuniões de trabalho, jantares com amigos, etc... Foi o Alexandre que disse que teríamos de mudar para um sítio onde a sida não fosse o único tema de conversa. Mudámos para Portugal em agosto de 1990 para começar de novo. E resultou. Portugal salvou-me a sanidade mental, tal como salvou o professor no meu livro. Ele fica muito grato ao país, e eu também..Trata duas situações que entretanto deixaram de ter os contornos complexos da década de 1990: a sida ser fatal e a homossexualidade hostilizada. Acaba por ser um "romance histórico"? É uma pergunta engraçada. Penso que sim. Os leitores vão descobrir um Portugal bastante diferente do país atual. Um país muito isolado do resto do mundo, com pouca diversidade étnica e cultural, pelo menos em comparação com as grandes cidades como Nova Iorque ou Paris. Um país mais machista, mais difícil para as minorias, mais escuro em muitos sentidos, em que ser homossexual era considerado uma vergonha ou uma doença mental. Mas por outro lado, não está tão longe de 2020, pois foi só em 2010 que o Parlamento legalizou o casamento de pessoas do mesmo sexo. Antes disso, os homossexuais eram tratados como cidadãos de segunda. E 97 deputados votaram contra a legalização, afirmando que os LGBT não deviam ter direitos iguais aos outros. Parece-me quase inacreditável que nenhum destes 97 tenha feito um pedido de desculpas público desde 2010. Não devíamos pedir desculpa quando tentamos limitar os direitos civis dos outros? Infelizmente, há locais em Portugal onde ainda é muito difícil ser um jovem gay ou lésbica. Sei isso porque faço muitas sessões em escolas, um pouco por todo o país. Para dar coragem e força aos jovens em situações de sofrimento ainda falo da minha sexualidade - para exemplificar que é possível ser fiel à nossa natureza e ser realizado e conseguir uma vida emocional e sexual saudável e segura..A segunda situação é ainda uma realidade nos atuais EUA ou também mudou? Estamos a viver um período de retrocesso cultural e social nos EUA. Já sabemos que os movimentos da ultradireita têm hoje mais poder, financiamento e apoio na própria Casa Branca. Estes grupos de ódio têm como alvos os judeus, afro-americanos, gays, lésbicas, imigrantes... Tenho muito medo de que esta situação vá piorar, sobretudo se Trump consegue ser eleito uma segunda vez. E vamos ter uma nova juíza fundamentalista cristã no Supremo Tribunal, o que pode significar que as mulheres vão perder o direito de interromper a gravidez e os imigrantes não legalizados vão perder o direito de ter acesso aos hospitais e escolas públicas. Quanto à comunidade LGBT, podem perder o direito de casar. Uma lição que aprendi nas pesquisas que faço para escrever os meus romances históricos é que os direitos fundamentais podem ser perdidos num curto período de tempo. Aconteceu na Alemanha nos anos 30 do século passado, daí que se não cuidarmos da nossa jovem democracia em Portugal, podemos voltar aos tempos em que só uma pequena minoria de pessoas - das famílias abastadas - tinham acesso ao ensino superior. Se pensamos que tal não pode acontecer, estamos completamente enganados..Citaçãocitacao"Há momentos na história em que temos de declarar a nossa posição, como na Alemanha de 1935: ou estamos com os nazis ou contra eles. Não há meio-termo.".Além dos temas referidos, Insubmissos trata da eutanásia. Foi difícil escrever esta parte ou o autor sente o mesmo alívio que o doente? Não foi difícil escrever essa parte do livro em 1995 mas envolveu imenso trabalho, pois tinha de funcionar muito bem e afetar o leitor a um nível emocional. Chorei há uns meses quando li a cena pela primeira vez nos últimos 24 anos. Provavelmente porque é bastante autobiográfico. O meu irmão perdeu muitas capacidades físicas perto do fim - não conseguia usar as mãos ou andar devido à neuropatia, por exemplo. Estava a sofrer imenso. Eu sabia que não aguentava mais. Vi isso na sua cara. Nunca tinha visto uma cara tão triste e sem esperança na minha vida. Ainda por cima, sofria dores agudas nas pernas. Tomava antidepressivos para manter a sua resistência. Como não conseguia tomá-los sozinho, eu punha o comprimido na sua língua e ajudava-o a beber água. Os outros amigos ajudavam-no também. Uma década antes ele tinha-se convertido ao cristianismo. Sabia que tinha fé porque falávamos disso de vez em quando. Por isso, disse-lhe que ninguém o censurava ou criticava se decidisse ir ao encontro de Deus. E arrisquei que ele ficasse zangado comigo e disse-lhe que o ajudava. Ele compreendeu o que eu queria dizer mas nunca me pediu para lhe dar algo. Nunca mais falámos sobre o assunto. Morreu poucos dias depois. Mas, no momento em que lhe ofereci a minha ajuda, estava completamente preparado para seguir as suas instruções. Se me tivesse dito, "Por favor, deita 10 comprimidos na minha língua", teria feito isso. Aprendi muito durante o longo período de sofrimento dele e uma das lições é que devíamos todos ter o direito de morrer quando achamos que a vida já não faz sentido - e morrer com dignidade. E uma segunda: há situações em que a morte, quando acontecer, é uma bênção..Ao fim de tanto tempo em Portugal, sente-se ainda como o "americano na Terra Onde o Tempo Parou"? Da maneira nenhuma. Em muitos aspetos Portugal é agora muitíssimo mais evoluído do que os EUA. A evolução de Portugal nos últimos 40 anos tem sido espetacular. Em 1974, no fim da ditadura, 35% da população era analfabeta, havia muito trabalho infantil e só a classe média alta conseguia enviar os filhos para a universidade. As mulheres sofriam muitos obstáculos sociais e profissionais. O progresso nestas áreas e outras tem sido uma história de sucesso. O país é, de facto, um refúgio neste momento. Temos um bom sistema nacional de saúde e escolas públicas de qualidade. E ainda há respeito para com o conhecimento e para com a ciência. Não é o caso nos EUA e em muitos outros países. Os EUA e o Brasil estão a regredir no tempo e os seus líderes estão a minar as suas democracias. Milhões de pessoas nos dois países orgulham-se de serem ignorantes e ao desprezarem o conhecimento criam uma situação perigosíssima. Depois de 30 anos em Portugal, sinto-me completamente à vontade aqui. Escrevo os meus livros para crianças em português - o mais recente saiu há três semanas: Na Terra dos Animais Falantes. Não vivo num enclave de estrangeiros, pois os nossos grandes amigos são todos portugueses e estou a participar ativamente na sociedade portuguesa. Sou português e sou americano. Não há qualquer conflito entre nacionalidades dentro de mim..É um livro que podia começar assim: "Era uma vez..." Afinal, está repleto de ilusões e desilusões, e de um certo maniqueísmo entre o que se considera bem e mal. Concorda? Concordo. Acho que há momentos na história em que temos de declarar a nossa posição, como na Alemanha de 1935: ou estamos com os nazis ou contra eles. Não há meio-termo. Como a sida nos anos 1980/90 exigia um posicionamento claro: ou estamos do lado da compreensão e de aceitação ou estamos do lado de silêncio e da morte.."Estava à espera de que batesse com a porta, mas, provavelmente, para me desiludir, não o fez." Até que ponto gosta de caracterizar a intimidade dos personagens?.Acho que explorar a vida interior de uma personagem é uma das grandes vantagens de ficção. Através desse processo, o leitor consegue estabelecer uma ligação emocional muito forte com pessoas de outras épocas, países e condições humanas. Isso pode ajudar a aceitarmo-nos a nós próprios enquanto seres. Por exemplo, sinto-me menos só sabendo que tenho muitos medos e dúvidas em comum com o narrador de Minha Ántonia de Willa Cather, por exemplo. Depois de ler todos os livros de Cather, também consegui uma profunda empatia com ela. Tenho sentimentos semelhantes em relação a Dostoievski, William Faulkner, Philip Roth, e vários outros grandes escritores. Até com autores mais antigos, como Cervantes. Infelizmente, nem todos os autores conseguem criar estes laços com o leitor. Há imensos romancistas que exploram apenas a superfície das pessoas e das situações. Não consigo ler tais livros. Ver um jogo da NBA é muito mais interessante..Tem uma frase muito cautelosa: "Apetecia-me reaver a distância do turista." Um escritor é obrigado a resguardar-se? É uma boa pergunta. Como autor, dou tudo ao meu livro. A narrativa é o fruto de tudo que vivi: traumas, alegrias, desgraças, vergonhas, sucessos, traições, desilusões... Aproveito todas as minhas experiências para criar personagens realistas e complexas, com fantasias e fraquezas e um passado e desejos para o futuro. Através delas, tento contar uma história surpreendente e comovente. Para o fazer preciso de emoções fortes. Explico... quando escrevi Insubmissos, estava profundamente perturbado pela sida e as suas consequências, pela falta de compreensão por parte do governo americano e de milhões de pessoas no mundo, que preferiam estigmatizar os doentes e culpabilizar os moribundos em vez de oferecer apoio e empatia. Utilizei os meus sentimentos perante esta situação injusta para manter a minha bateria carregada durante os 18 meses de escrita. É muito difícil criar um mundo paralelo que existe num só lugar, a nossa cabeça. Exige uma dedicação extraordinária e muita força interior. Daí a necessidade de o autor usar as suas emoções fortes para continuar a escrever mês após mês. Um aviso: não podemos deixar a raiva ou revolta ou qualquer outra emoção tomar controlo de nós ou criaríamos uma narrativa melodramática e exagerada..Entre as várias características que desenha sobre a população está: "Os portugueses sentem-se intimidados com as mulheres inteligentes." Coisa do passado ou mantém essa opinião? Acho que a sociedade portuguesa mudou bastante em relação às relações entre homens e mulheres. Os jovens, sobretudo as jovens, podem responder melhor do que eu mas acredito que já há uma geração de homens que aceitam melhor uma namorada ou mulher talentosa, inteligente e independente. Mas nos anos 1980/90, essa aceitação era mais rara. Por exemplo, conheço várias mulheres com profissões muito promissoras que deixaram de trabalhar quando casaram. Porquê? Os maridos não queriam que trabalhassem. Infelizmente, penso que ainda vivemos numa sociedade bastante machista. E não é só Portugal, obviamente. Em todo o mundo, penso que homens de pouca confiança e com baixa autoestima têm medo de mulheres competentes e fortes..Citaçãocitacao"Grande parte dos romances de sucesso são superficiais, repetitivos e pessimamente escritos. Uso a expressão clones, pois quando um livro sobre uma conspiração no Vaticano vende bem, aparecem mais 200. Uma moda agora é colocar 'Auschwitz' no título.".Ainda o choca existir tanto português católico sem fé? A minha perspetiva é que o catolicismo em Portugal é mais cultural do que religioso. Embora a Igreja ainda tenha muito poder em Portugal, poucas pessoas vão à missa, por exemplo. Os casais batizam os filhos não por razões de doutrina ou fé mas porque é a tradição familiar. Quando escreve "Na Idade Média, Deus não gostava de gente como eu (judeu e homossexual) " para afirmar que a religião perdeu na competição com a televisão é uma provocação? Não. O narrador está a dizer que é maravilhoso que as sociedades ocidentais tenham evoluído desde a Idade Média. Para evidenciar um bocadinho de graça e dar força à sua declaração, diz que é preferível as pessoas verem televisão - mesmo os programas idiotas - do que perseguir judeus, homossexuais ou cientistas. Não é uma provocação. É, de facto, um enorme progresso! Temos de lembrar que em Portugal, entre 1536 e o fim do século XVIII, os autos-de-fé da Inquisição eram uma forma de entretenimento para o povo. Milhares de espectadores iam às praças principais para ver judaizantes (Cristãos-Novos acusados de praticar judaísmo) serem queimados vivos. A perspetiva do professor no livro é que a televisão é uma forma de entretenimento muito preferível. Penso que só um antissemita doentio discordava com isso..Portugal é descrito como um cenário perfeito para amar um outro homem. Deste país também um personagem diz "Todos os meus amigos foram extravagantes"... Nessa cena, o António está a tentar provocar o professor. E está a referir-se aos amigos americanos, muitos deles já mortos. O que António diz é mentira - o professor tinha amigos nos EUA que eram grandes jogadores de basquetebol, por exemplo. Mas o professor não se deixa provocar. Responde que não tem nada contra a extravagância e que aprendeu a aceitar e a apreciar as pessoas como elas são. Não tenta mudar a maneira de ser dos seus amigos. Ele evidencia uma atitude que eu considero madura e sensível. No mundo gay dos anos 1980/90, havia muitos homens que eram superdramáticos e efusivos em privado e totalmente contidos em público. A necessidade de esconder as suas opções sexuais faziam que tivessem desenvolvido duas personalidades: uma na vida privada, com amigos de confiança, e outra em público. É uma estratégia de defesa e de sobrevivência. Curiosamente, vemos a mesma estratégia nos judeus secretos em Portugal nos séculos XVII e XVIII: uma personalidade para fora da casa, outra para dentro..Encontrou mais espécies como aquele personagem de quem diz ser como "A Arca de Noé num só corpo"? Eu! Às vezes sou muito teimoso, noutras flexível. As vezes muito cómico, noutras supersério. Penso que tenho uma personalidade bastante adaptável. Todas as culturas associam certas qualidades com animais - no mundo anglo-saxónico, por exemplo, coragem e nobreza são identificados com o leão. Por isso é que os egípcios criaram deuses que eram metade humanos e metade animais. Era o reconhecimento que temos os animais - ou seja, as suas características - no nosso interior. Também é um reconhecimento subtil que os animais são criaturas que merecem a nossa compreensão, pois têm uma vida emocional como nós..Um dos personagens compara a angústia em saber os resultados dos testes do VIH com a tortura sobre um ativista político e dá como receita a esperança. Como resposta, o outro diz que quer antes morrer zangado. Em que lugar esteve ou está? Preciso de esperança para viver e para manter a minha sanidade mental. Não aceito injustiças como o racismo, o antissemitismo, etc., mas não quero passar a única vida que tenho na Terra sempre zangado. Há aquele poema famoso de Dylan Thomas em que diz: "Do not go gentle into that good night. Rage, rage against the dying of the light." Compreendo o que Thomas quer dizer, e simpatizo até a um certo ponto, mas eu preferiria ir ao encontrar da morte apaziguado, sereno e sem remorsos..Recorda como O Último Cabalista de Lisboa foi recusado por mais de dez editoras norte-americanas por se passar em Lisboa quinhentos anos antes. Essa é uma situação que ainda se manterá ou o romance histórico já interessa aos leitores americanos? Escrevi esse livro antes de o romance histórico ficar na moda no mundo anglo-saxónico. Nos anos a seguir, os editores e os leitores começaram a apreciar esse género de literatura. Agora, o problema no mundo editorial é outro, e tem sido exacerbado pela covid-19. As editoras só querem publicar livros muito comerciais, daí que grande parte dos romances de sucesso sejam superficiais, repetitivos e pessimamente escritos. Uso a expressão clones, pois quando um livro sobre uma conspiração no Vaticano vende bem, aparecem mais 200. Uma moda agora é colocar "Auschwitz" no título. Qualquer romancista incompetente pode criar um péssimo livro e conseguir um bestseller colocando essa palavra no título. Acho um crime moral, pois é tornar um campo de morte numa estratégia comercial. Antigamente, uma boa editora publicava dez livros comerciais para ter o prazer de publicar três excelentes obras que provavelmente iriam vender pouco. Essa política editorial já não existe. É uma pena porque é cada vez mais difícil ao leitor sério e sensível encontrar excelentes livros. A única maneira de dar a volta à situação é apoiar autores de qualidade. Por isso, digo aos meus amigos para comprarem bons livros. Se não fizermos isso, vamos ter só lixo nas mesas principais das livrarias..Richard Zimler Porto Editora À venda no dia 27