Diplomacia americana mobiliza aliados
Considera Putin um criminoso?" Apanhado de surpresa pela pergunta do jornalista, Biden não teve hipótese. Após breve hesitação respondeu "I do!" (Sim!), e acrescentou que o líder russo "pagaria um preço" pelos seus crimes. O insulto não podia ser mais direto.
O Kremlin corou de indignação. Putin sugeriu, no meio de uma tempestade diplomática entre Moscovo e Washington, que Biden estava a ver-se ao espelho, e sugeriu-lhe que olhasse para os crimes americanos - das práticas da escravatura ao genocídio contra a população nativa americana ou às bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui. O líder russo desafiou Biden para um debate e disse que a única coisa que tinha a responder era desejar-lhe "boa saúde".
O novo chefe da Casa Branca confirmava assim a promessa, tantas vezes repetida, de "mão dura" com Moscovo. Biden disse que esse "preço" em breve seria conhecido, mas os peritos apostam num novo pacote de sanções com efeitos potencialmente devastadores para a economia russa. As palavras de Biden e a expectativa de novas sanções tiveram o efeito imediato de uma queda da cotação do rublo em relação ao dólar, e de um clima de nervosismo nos mercados financeiros russos.
Para já, a Casa Branca instou as companhias envolvidas na construção do gasoduto Nord Stream 2 a cessarem imediatamente a sua participação no projeto sob pena de sofrerem sanções. Joe Biden repetiu que o gasoduto, destinado a aumentar o fornecimento de gás russo à Alemanha, era uma "má ideia", tanto para a Europa como para os Estados Unidos, um plano russo para "dividir a Europa e enfraquecer a segurança energética europeia".
Três dias depois, a 19 de março, o secretário de Estado Antony Blinken e o conselheiro nacional de Segurança, Jake Sullivan, deslocavam-se ao Alasca para se avistarem com uma delegação chinesa que incluía altos responsáveis do Partido Comunista e o ministro dos Estrangeiros Wang Yi. Tratava-se do primeiros encontro de alto nível entre os dois países na era Biden.
Pequim alimentava expectativas elevadas quanto ao encontro, vendo-o como um primeiro passo para reparar as relações entre os dois países, para uma détente depois dos anos de tensão vividos no mandato de Donald Trump e o porta-voz do Ministério dos Estrangeiros de Pequim, Zhao Lijian, falou de um "diálogo estratégico de alto nível" e de uma salutar "normalização" das relações entre os dois países.
Antony Blinken vinha claramente com outras ideias. Sem fazer cerimónias, o secretário de Estado norte-americano apontou o dedo a Pequim e acusou a China de "ameaçar a ordem baseada em regras que mantêm a estabilidade internacional", nomeadamente em situações como Hong Kong, Taiwan e Xinjiang.
Responsáveis militares americanos alertam ainda para a ameaça de um conflito militar com Taiwan, que Pequim considera uma província rebelde e constitui desde há muito um ponto crítico nas relações entre os Estados Unidos e a China.
Blinken, que concluíra dias antes uma romagem asiática, incluindo nomeadamente Tóquio e Seul, disse ter regressado com compromissos renovados com uma "visão comum" de uma região do Indo-Pacífico "livre e aberta", acusando ao mesmo tempo a China de usar "coerção e agressão" para conseguir os seus objetivos.
O Japão e os Estados Unidos advertiram, numa declaração conjunta, que não tolerariam o "comportamento desestabilizador" da China. Expressaram as suas objeções às reivindicações "ilegais" às águas e às ilhas dos mares do sul da China, onde Pequim ocupou unilateralmente territórios reivindicados pelo Vietname, pelas Filipinas, por Taiwan e outros países vizinhos.
Washington quer assim claramente assinalar a Pequim que tem capacidade para mobilizar aliados na área para se oporem às ambições chinesas, nomeadamente através do grupo Quad (Quadrilateral Security Dialogue), uma aliança que reúne os Estados Unidos, o Japão, a Índia e a Austrália - fala-se de uma próxima adesão da Coreia do Sul -, sem dimensão militar direta, mas com uma forte componente de segurança.
Dado o recado a Pequim, Blinken reuniu-se entretanto em Bruxelas com chefes da diplomacia dos aliados, reiterando o "pleno compromisso da América com a NATO, incluindo o Artigo 5" - o mecanismo de defesa comum - e garantindo que a nova administração americana tenciona reforçar o seu empenho nas alianças e nos aliados dos Estados Unidos.
Num gesto "simpático", Blinken omitiu o apelo, ritualmente repetido por sucessivas administrações, e com particular veemência por Donald Trump a que os aliados aumentem as suas despesas militares para 2% do rendimento nacional.
Nesse renovado "compromisso" Blinken insistiu que as decisões serão coletivas, mas não deixou de dar algumas notas para a agenda dos aliados atlânticos nos próximos tempos.
Quanto à Rússia, Biden dera já o recado. Antony Blinken apelou a uma posição firme e partilhada dos aliados de modo a garantir que a Rússia será responsabilizada pelas suas "ações hostis e imprudentes" Condenou ainda, em nome da NATO, a "desestabilização" de países vizinhos e os esforços do Kremlin para influenciar eleições e apoiar ciberataques. Recordou a propósito que "em resposta às ações russas, a Aliança Atlântica implementou o maior esforço na defesa coletiva da nossa geração", numa referência ao dispositivo militar da Aliança junto às fronteiras da Rússia.
O secretário de Estado norte-americano denunciou ainda o "comportamento coercivo" da China e garantiu que "está fora de causa permitir que o comportamento de Pequim ameace a nossa segurança coletiva e prosperidade" e acusou a China de pretender/tentar "minar as regras do sistema internacional e os valores que nós e os nossos aliados partilhamos".
Ao mesmo tempo o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, disse, numa entrevista à Deutsche Welle que a competição com a China oferece "uma oportunidade única para abrir um novo capítulo na relação entre os Estados Unidos e a Europa" - numa aparente referência ao problema da Aliança Atlântica de encontrar um "inimigo" mobilizador, uma nova razão de ser depois do desaparecimento do adversário soviético.
Quanto à China, Antony Blinken disse aos aliados que não os forçará a tomar decisões "nós ou eles", numa aparente referência a aspetos dilemáticos da questão para aliados europeus com fortes compromissos económicos com os chineses, mas apelou claramente à "ação conjunta" dos aliados contra o "comportamento agressivo" de Pequim. O recado não caiu em saco roto. A Europa juntou-se ao Reino Unido, Estados Unidos e Canadá na aplicação de sanções à China por alegados abusos dos direitos humanos na região de Xinjiang.
Estas iniciativas da diplomacia americana parecem dar indicações importantes sobre alguns princípios fundamentais da política externa da Administração Biden. A mensagem fundamental deixada Blinken no encontro do Alasca é a de que os EUA não reconhecem à China a condição de parceiro da cena internacional, e que as relações decorrerão segundo as normas decididas por Washington.
Uma política há muito rodada. Foi exatamente a linha seguida face à Rússia depois da subida ao poder de Vladimir Putin face à ambição de ver a Rússia reconhecida como membro de pleno direito da cena internacional.
Há muito, desde os anos 1990, documentação estratégica americana insiste em um dos grandes objetivos da política americana no mundo era impedir a todo o custo o surgimento de um peer competitor - ou seja uma potência - adversário ou aliado - capaz de ombrear com a América de igual para igual.
Em resumo a nova administração americana parece preparar condições para um regresso ao "grande consenso" da era Clinton, em que Washington conseguiu a anuência dos aliados aos objetivos estratégicos americanos.
Resta saber se será possível reconstituir o quadro geopolítico da "era unipolar". A questão da China coloca dilemas delicados à Europa. E se os aliados europeus têm mostrado uma irrepreensível disciplina face à Rússia, a questão provoca também divisões entre os europeus.