Com a indústria musical praticamente suspensa e à espera de melhores dias, o lançamento surpresa de Kriola, o novo disco de Dino d'Santiago, foi um dos acontecimentos musicais desta primavera. Tal como acontecia no aclamado Mundu Nôbu, também este álbum remete para a tradição musical cabo-verdiana, estabelecendo uma ligação de continuidade mas também de evolução, com o anterior trabalho..Apesar de não o poder mostrar ao vivo, como seria o normal num mundo pré-pandemia, o músico e cantor algarvio, de origem cabo-verdiana, sentiu ser este "o momento exato" para o fazer, pela "mensagem de mistura e de crioulidade, numa altura em que o mundo se está a fechar". Por agora não vai haver festa, pelo menos daquelas a que estamos habituados, com multidões a dançar ao som de Dino d'Santiago, mas a banda sonora deste tempo estranho, tão a preto e branco, ganhou muito mais cor com Kriola e é isso que também merece ser celebrado..Por que razão decidiu editar este álbum de surpresa? Teve alguma coisa que ver com a atual situação que vivemos? Teve tudo que ver. O disco estava inicialmente previsto para dia 17 de abril, mas depois fui informado pela editora de que a edição de novos álbuns iria ser adiada durante algum tempo, pelo que lhes pedi para antecipar o lançamento deste. Era o que fazia mais sentido para mim, até porque o aniversário do meu pai era precisamente no dia 3 e era também uma maneira de me sentir mais perto dele, nesta altura..Este é um disco muito ligado a Cabo Verde, que assim estabelece uma continuidade com o anterior, mas ao mesmo tempo soa a novo, concorda? Sem dúvida, até porque começou a ser gravado logo em janeiro de 2019, mal terminámos o álbum anterior. A ideia foi mesmo prolongar a dinâmica que tínhamos conseguido entre nós durante as gravações. Conseguimos encontrar um som só nosso e não queríamos desperdiçai isso. No fundo é isso, é um disco igual, mas ao mesmo tempo diferente. No Mundu Nôbu eu peguei naqueles músicos, vindos de várias partes do mundo, e levei-os a Cabo Verde, e agora é o processo contrário. É Cabo Verde a vir diretamente para cidades como Lagos, Londres ou Berlim, segundo a leitura e a visão desses mesmos músicos..E é um trabalho que, de certa forma, mantém a mesma temática, com uma mensagem de paz, união e fraternidade? Sim, também. Eu faço discos para as pessoas dançarem, mas também para serem ouvidos e colocá-las a pensar. É por isso que não edito singles, porque necessito do processo de narrativa que apenas um álbum permite, para poder passar a minha mensagem. E essa foi também uma das razões por que pedi à editora para adiantar o lançamento, por ter sentido que o melhor momento para fazer passar esta mensagem era precisamente agora. Era uma mensagem necessária para este período que estamos a viver..Em que sentido? Porque traz uma mensagem de mistura e de crioulidade numa altura em que o mundo se está a fechar, devido à pandemia. Mas por outro lado, por estarem em casa, as pessoas estão com mais tempo e disponibilidade para ouvirem um disco do princípio ao fim e focarem-se mais na mensagem..Onde é que está a viver este período de isolamento social, foi para o Algarve, para junto da sua família? Estou na minha casa em Mem Martins, cheguei de Londres mesmo em cima de tudo isto começar a acontecer e já não consegui ir a tempo para o Algarve. Mas comunico todos os dias com os meus pais e os meus irmãos, bem como com familiares e amigos que vivem no Luxemburgo ou na Suíça. É engraçado como esta situação nos uniu ainda mais..Como é que está a viver este período de isolamento? Vou ser muito franco e espero não ser mal interpretado, mas de certa forma precisava de um compasso de espera como este na minha vida. Não por estas razões, claro, é óbvio que estou muito preocupado com a doença, com a morte e o sofrimento das pessoas, mas pessoalmente estou a viver como se fosse um tempo de regeneração e era bom que o mundo também o encarasse assim. Damos tudo por adquirido e agora, de repente, somos obrigados a estar presos em casa, devido a uma doença desconhecida. E isto surge numa altura em que questões como o racismo, a crise dos refugiados ou a ascensão da extrema-direita voltaram a estar na ordem do dia. Ou seja, questões que têm como objetivo dividir-nos e separar-nos uns dos outros. E agora isto devolve-nos a noção de que afinal não há nós e eles, porque todos fazemos parte de um todo ainda maior. De repente passámos a ser pessoas mais sensíveis e preocupadas com o outro, portanto daqui para a frente só podemos melhorar..E artisticamente, como é que o isolamento o afeta? Para já sinto-me a crescer, tanto artística como pessoalmente, com estes momentos de reflexão. No fundo éramos uma espécie de máquinas que mais não eram do que projeções daquilo que os outros esperam de nós. E agora, finalmente, talvez possamos ser o personagem principal..Como vê a situação caótica que se vive na cultura e na área da música em particular? Estou muito preocupado, claro, espero que quando tudo isto passar e as pessoas finalmente puderem sair de casa, todos se lembrem de que fomos nós, os artistas, a salvá-los da loucura. No meu caso, mesmo sem os espetáculos, ainda recebo os direitos de autor da minha música, mas e quem faz funcionar o resto da máquina? São eles e as respetivas famílias que estão a sofrer as maiores consequências desse caos..Qual poderia ser a melhor solução para aliviar esses casos? Não faço ideia, mas algo tem de ser feito. Já há grandes empresas a libertar fundos para as artes, mas é sempre para projetos criativos e, mais uma vez, os técnicos acabam por ficar de fora. Talvez aquelas câmaras que já tinham contratos assinados e orçamentos aprovados para a cultura os devessem disponibilizar para um qualquer fundo solidário, que revertesse a favor dos técnicos. Ou então que os espetáculos não fossem cancelados, como muitos já foram, mas apenas adiados.