Ao receber um Globo de Ouro, atribuído pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, consagrando a sua interpretação da princesa Diana na quarta temporada da série The Crown, Emma Corrin agradeceu... à princesa Diana. Segundo as palavras da atriz inglesa de 25 anos (tinha cerca de um ano e meio quando, em 1997, ocorreu o acidente fatal que vitimou Diana), a sua personagem ensinou-lhe "compaixão e empatia para lá de qualquer medida que pudesse imaginar". Corrin reconhecia, assim, que a herança de Diana, sendo histórica, é sobretudo de natureza mitológica. A partir de agora, para o melhor ou para o pior, a sua carreira de atriz vai existir marcada por essa componente "transcendental" que faz que a personagem se aproprie da sua intérprete, sobretudo quando, como é o caso, ainda não possui uma filmografia (cinematográfica ou televisiva) que lhe confira uma identidade artística acima destas atribulações de casting. Em paralelo com o seu trabalho em The Crown, Corrin compôs uma personagem também com curiosas ressonâncias simbólicas... mas as notícias quase não recordaram essa performance. Foi, aliás, a sua estreia em cinema, no filme Misbehaviour (2020), entre nós lançado como Mulheres ao Poder. O seu tema: o concurso de Miss Mundo de 1970, realizado em Londres. Combinando ironia e militância, o filme, realizado por Philippa Lowthorpe, evoca o modo como o evento ficou marcado pelos protestos organizados por um grupo de ativistas do recém-formado Movimento de Libertação das Mulheres; tentando atenuar as controvérsias que antecederam o espetáculo, envolvendo em particular a denúncia do apartheid na África do Sul, a organização promoveu mesmo a inscrição de duas representantes desse país, uma branca, outra negra... A concorrente branca era interpretada por Emma Corrin..Mesmo não esquecendo que a memória de Diana envolve componentes trágicas e romanescas ainda relativamente próximas, é um facto que as personagens da realeza há muito funcionam como uma espécie de "suplemento" artístico. E, há que reconhecê-lo, com especial eficácia nas cerimónias de atribuição de prémios. Aquele ou aquela que interpreta uma dessas personagens, rei ou rainha, príncipe ou princesa, parece surgir "engrandecido" pela respetiva dimensão mitológica. Lembremos o exemplo de um filme tão convencional como O Discurso do Rei (2010), de Tom Hooper: o academismo do empreendimento não o impediu de ganhar quatro Óscares, incluindo o de melhor ator (Colin Firth) e melhor filme do ano, numa corrida em que, vale a pena lembrar, estavam envolvidos títulos tão singulares como A Rede Social, de David Fincher, e A Origem, de Christopher Nolan..A apetência cinematográfica pela personagem de Diana não pode ser desligada de um fenómeno que há muito pontua a produção de língua inglesa: a realeza britânica funciona como fonte de narrativas tanto mais sugestivas quanto parece ser sempre possível tratá-las através de registos muito diversos, da tragédia familiar ao melodrama. Para nos ficarmos por um exemplo lendário, recordemos a composição de Isabel I por Bette Davis no filme The Private Lives of Elizabeth and Essex (1939), de Michael Curtiz, entre nós chamado Isabel de Inglaterra. Na arqueologia cinematográfica da Diana, será fundamental recordar A Rainha (2006), o filme de Stephen Frears sobre a conjuntura política, mediática e emocional vivida na sequência da morte de Diana. A esse propósito, quem se lembra de Laurence Burg?... É esse o nome de uma conselheira municipal de uma cidadezinha do nordeste francês que teve alguma notoriedade mediática como "sósia" daquela que a história consagrou como Princesa do Povo... Pois bem, Frears soube do facto e convidou-a para assumir a personagem de Diana no seu filme. Como todos os espectadores de A Rainha se recordam, Diana era, afinal, uma personagem absolutamente secundária. Central pelas implicações familiares, políticas e simbólicas da sua morte, mas secundária no sentido em que tudo se passava em torno de Isabel II (a sua composição valeu um Óscar a Helen Mirren). Seja como for, há no filme de Frears um dado que, agora, somos levados a reconhecer como premonitório: o argumento tem assinatura de Peter Morgan, o criador, também argumentista, de The Crown..A 29 de julho de 1981, o casamento de Carlos, Príncipe de Gales e Lady Diana Spencer foi transmitido em direto para cerca de meia centena de países, tendo sido acompanhado por uma audiência global calculada em 750 milhões de espectadores (30 milhões no Reino Unido). Não admira que a apropriação da história de Diana, envolvendo a consolidação de uma imagem de recortes mitológicos, tenha sido, antes de tudo o mais, um fenómeno televisivo. Logo em 1982, dois telefilmes americanos abordaram o casamento: Charles & Diana: A Royal Love Story (ABC) e The Royal Romance of Charles and Diana (CBS), com a personagem de Diana interpretada, respetivamente, por Caroline Bliss e Catherine Oxenberg. Nenhum deles ocupa um lugar de destaque em qualquer história da televisão. E por uma razão muito básica: não passam de dramatizações vulgares, promovendo a noção pueril de que a agitação dos noticiários se confirma e, de alguma maneira, amplia na "dramatização" dos protagonistas e da sua intimidade. Esta lógica foi acompanhando a evolução do casamento de Carlos e Diana, ecoando, "em paralelo", as respetivas atribulações mais ou menos mediatizadas. O romantismo das origens deu lugar à purificação pela verdade. Assim, por exemplo, em 1993, cerca de um ano depois da separação do casal (o divórcio só seria oficializado em 1996), a NBC produzia um telefilme cujo título proclamava a necessidade de contar a "história verídica": Diana: Her True Story tinha como protagonista Serena Scott Thomas (irmã mais nova de Kristin Scott Thomas). Em 1994, a relação de Diana com James Hewitt surgiu tratada no livro Princess in Love, de Anna Pasternak. A sua adaptação daria origem, em 1996, a um telefilme homónimo (CBS) que terá tido a sua mais contundente apreciação crítica formulada pela própria protagonista, Julie Cox. Assim, em vésperas da primeira emissão do telefilme, declarou à revista People que nem sequer lera o livro: "Pensei que iria detestá-lo. Pensei que, se o lesse, iria ter muita dificuldade em encarar o argumento a sério.".Dir-se-ia que, no domínio audiovisual, a personagem de Diana tem sido, sobretudo, a princesa do povo televisivo. Como se a sua repetida "reencarnação" no pequeno ecrã definisse e sustentasse uma espécie de ritual mediático, compulsivo e redentor. Em 2007, as teorias da conspiração em torno da morte de Diana encontraram mesmo expressão em The Murder of Princess Diana, produção de uma televisão por cabo dos EUA. Em cinema podemos registar um filme menor, ainda que empenhado em escapar aos clichés mais simplistas: lançado em 2013, intitula-se apenas Diana. Trata-se, neste caso, de evocar a derradeira relação amorosa de Diana, com Hasnat Khan, cirurgião paquistanês a trabalhar em Londres. Num registo de sereno intimismo, o filme dirigido pelo alemão Olivier Hirschbiegel distingue-se, pelo menos, pela sobriedade dos protagonistas: Naomi Watts interpreta Diana, estando o papel de Khan entregue a Naveen Andrews (na altura muito popular graças à sua participação na série Lost). Entretanto, é caso para dizer que a saga continua. Assim, Diana vai reaparecer na quinta temporada de The Crown. Mantendo a estratégia de diversificação dos intérpretes principais, o elenco será renovado, com a personagem de Diana entregue à australiana Elizabeth Debicki - vimo-la, em 2020, em Tenet, de Christopher Nolan, o único blockbuster de verão que ainda passou nas salas; no papel da rainha, Imelda Staunton sucede a Olivia Colman. Enfim, se o tratamento cinematográfico de Diana evoluir num sentido realmente original, talvez possamos dizer que as maiores expectativas apontam para um filme que terá como título o seu apelido de solteira: Spencer (com estreia prevista para o final de 2021). A princesa será interpretada por Kristen Stewart, a talentosa atriz americana cuja carreira, incerta e irregular, continua assombrada pela imagem "juvenil" dos filmes da série Twilight. Sem esquecer, claro, que a realização pertence ao chileno Pablo Larraín, notável analista da ditadura de Augusto Pinochet (recordemos apenas o exemplo de Post Mortem, com data de 2010), cuja filmografia inclui esse filme prodigioso que é Jackie (2016), retrato de Jacqueline Kennedy, interpretada por Natalie Portman, outra figura feminina envolta numa mitologia muito peculiar. A rodagem de Spencer iniciou-se em janeiro, sabendo-se apenas que o argumento, escrito por Steven Knight, se concentra num fim de semana, no início dos anos 90, em Sandringham House, residência particular de Isabel II - terá sido o momento em que Diana decidiu divorciar-se do Príncipe Carlos.