Diabéticos contra "discriminação inadmissível". Governo diz que podem ficar "tranquilos"

Diabéticos e hipertensos excluídos do regime excecional de proteção relativo à covid-19 alertam que isso deixa estas pessoas numa situação de "vulnerabilidade ainda maior". Secretário de Estado de Saúde esclarece que os doentes descompensados serão incluídos no regime de proteção
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A Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) classificou de "discriminação inadmissível" a medida que exclui os diabéticos do regime excecional de proteção no âmbito da covid-19 e apela ao Governo para que reconsidere a sua decisão.

A retificação, publicada na terça-feira em Diário da República e que retira da lista do regime excecional de proteção no âmbito da COVID-19 as pessoas com diabetes e hipertensão, foi feita quatro dias após a publicação do diploma que previa que os trabalhadores com doenças crónicas e imunodeprimidos pudessem ter as suas faltas justificadas por declaração médica, nos casos em que não fosse possível exercer as suas funções à distância.

Já esta quarta-feira, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, garantiu que os doentes com diabetes e hipertensão "podem ficar tranquilos", pois o regime de proteção aplicar-se-á a todos aqueles que estiverem em estado "descompensado". [ver mais no final do texto]

O certo é que a retificação legislativa provocou ondas de indignação junto das associações de doentes e especialistas clínicos.

Em declarações à agência Lusa, o presidente da APDP afirmou que esta decisão foi "um banho de água fria", porque a associação tinha manifestado na terça-feira "satisfação porque pela primeira vez o Governo encontrara uma forma de proteção no trabalho das pessoas que não têm condições de segurança e que, portanto, poderiam desta forma ver pago o seu salário e poderem proteger-se da covid-19".

"Esta proteção às doenças crónicas que o decreto fala é só por 30 dias e, portanto, não é uma situação de futuro. De qualquer forma era uma vantagem em relação à situação anterior", disse José Manuel Boavida.

Mas, vincou, quando "vimos a situação de ontem [terça-feira] achámos absolutamente inacreditável, porque não tem nenhum conteúdo científico, rigoroso nem nenhum conteúdo educativo, social. Não conseguimos compreender esta medida do Governo".

José Manuel Boavida contou que a associação tentou "convencer o governo" e tenta "perceber o que é que se passou".

"Aquilo que neste momento dizemos é que estamos dispostos a encontrar critérios de fragilidades nas doenças crónicas que possam justificar uma maior proteção e um direito a um confinamento em condições de justificação de falta ao trabalho e, portanto, pagos pela empresa, estamos a trabalhar nisso", salientou.

Para o médico endocrinologista, "não faz qualquer sentido" neste momento ter que "pôr a situação de confrontar doenças umas com as outras".

O especialista salientou que a diabetes e a hipertensão constituem neste momento, em Portugal e noutros países, "o grande monstro da mortalidade e do grande número de internamentos dos cuidados de saúde" e como tal devem ser tomadas como "um desafio tanto e igual como a covid-19 que é preciso prevenir".

Lembrou que, em Portugal, são diagnosticadas cerca de 200 pessoas por dia com diabetes, cerca de 5.000 mês, e que em média meio milhar de pessoas são internadas diariamente devido a esta doença.

"Uma pandemia como é a da diabetes merecia também uma política dirigida que fosse coerente e neste momento este decreto não vai nesse sentido", lamentou José Manuel Boavida.

"Que sinal de dever de proteção especial se dá às mais de 700.000 pessoas diagnosticadas com diabetes, das quais uma parte significativa já não está em idade ativa? Pede-se idoneidade e autocuidados e retiram-se direitos de proteção", criticou a associação.

Para o especialista, este retificativo vai no sentido de "afrontar as pessoas, o que não parece que seja uma medida minimamente justificável".

"Problema sério de saúde pública"

A Sociedade Portuguesa de Diabetologia (SPD) também se manifestou esta quarta-feira "negativamente surpreendida".

"Não percebemos qual é a intenção do Governo ao excluir as pessoas com diabetes do regime excecional de proteção", afirma em comunicado o presidente da SPD.

João Filipe Raposo sublinha que esta decisão do Governo impede estes doentes de ter as suas faltas justificadas por declaração médica, nos casos em que não fosse possível exercer as suas funções à distância, conforme estava previsto no diploma publicado há quatro dias, que dava esta possibilidade a todos os trabalhadores com doenças crónicas e imunodeprimidos.

A SPD lembra que, tal como outras sociedades científicas, tem vindo a fazer há meses "um trabalho árduo" para sensibilizar as pessoas com diabetes para o risco acrescido que têm perante a covid-19".

"Vários elementos do próprio Governo têm feito múltiplas menções a este risco. Foi uma surpresa para nós esta exclusão que se manifestou numa correção intencional não justificada deste decreto-lei", sublinha o presidente da Sociedade Portuguesa de Diabetologia.

Relembra ainda que "as sociedades científicas devem, entre outras funções, ser ouvidas em questões como estas para fazer o devido enquadramento técnico-científico, que claramente aqui não foi assumido".

"A diabetes representa um sério problema de saúde pública em Portugal, com mais de um milhão de pessoas a viver com a doença, das quais mais de 40% não está diagnosticada, pelo que temos ainda muitos aspetos a melhorar no panorama dos cuidados às pessoas com diabetes", salienta João Filipe Raposo.

Nesse sentido, defendem "esta exclusão era desnecessária, uma vez que deixa estas pessoas numa situação de vulnerabilidade ainda maior".

O especialista recorda que "o Decreto-Lei, agora alterado para excluir pessoas com diabetes e hipertensão, permitiria aos doentes crónicos e imunodeprimidos justificar faltas com base numa declaração médica, até um máximo de 30 dias num ano, a pessoas que em idade ativa não poderiam realizar a sua atividade laboral em regime de teletrabalho ou em condições de proteção especial".

"Estamos com certeza a falar numa população muito reduzida e que certamente merecia esta atenção por parte do Estado", lamenta João Filipe Raposo.

Sociedade de Hipertensão estranha exclusão

Também o presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão (SPH), Vítor Paixão Dias, manifestou estranheza pela decisão do Governo de excluir os hipertensos e os diabéticos do regime excecional de proteção para imunodeprimidos e doentes crónicos face à pandemia de covid-19.

O dirigente da SPH assumiu alguma cautela na reação, apesar de vislumbrar "um mau princípio" na mudança de posição do executivo.

"Os hipertensos não são todos iguais. Não me choca se forem doentes sem complicações decorrentes das respetivas doenças, e isso só pode ser avaliado pelo médico e caso a caso. É uma medida genérica, se calhar numa perspetiva orçamental, porque há muitos hipertensos e diabéticos, mas os estudos mostram que esses são doentes de risco", afirmou Vítor Paixão Dias.

Alertando para a necessidade de "ler nas entrelinhas do legislador", o presidente da SPH lembrou o peso de patologias preexistentes, como a hipertensão e a diabetes, no comportamento da covid-19 em Portugal, nomeadamente nos casos mais graves.

"Uma percentagem muito elevada de doentes com complicações era hipertensa ou diabética. Parece-me uma má solução se excluirmos todos. Estamos a excluir uma percentagem muito grande de doentes que, claramente, têm risco aumentado para complicações relacionadas com a covid-19", notou, vincando a incidência da hipertensão em mais de 40% da população portuguesa.

Para Vítor Paixão Dias, a questão está nos doentes cardiovasculares, que permanecem integrados no regime excecional de proteção laboral e não foram afetados pela retificação.

"Necessariamente, dentro dos doentes com doença cardiovascular estão hipertensos. E, se assim for, não tenho nenhum obstáculo", esclareceu o dirigente, que reforçou a existência de "um conjunto de doentes muito diverso", cuja exclusão ou inclusão total no regime "pode gerar muitas dúvidas na aplicação da lei".

A declaração de retificação n.º 18-C/2020 veio corrigir o Decreto-Lei n.º 20/2020 que definiu em 01 de maio o novo enquadramento para a fase de desconfinamento, após três períodos de estado de emergência. Inicialmente integrados nos grupos de risco acrescido face ao novo coronavírus, os doentes hipertensos e os doentes diabéticos já não poderão agora justificar faltas ao trabalho na situação de calamidade atualmente em vigor.

"Os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, designadamente os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica, os doentes oncológicos e os portadores de insuficiência renal, podem justificar a falta ao trabalho mediante declaração médica, desde que não possam desempenhar a sua atividade em regime de teletrabalho ou através de outras formas de prestação de atividade", pode ler-se na declaração de retificação.

"Diabéticos e hipertensos podem ficar tranquilos e confiantes", promete secretário de estado

Na conferência de imprensa diária de apresentação do boletim epidemiológico da DGS, António Lacerda Sales - o secretário de estado da Saúde - garantiu que as pessoas com diabetes e hipertensão continuarão a receber proteção relativa à covid-19. Esta tomada de posição acontece depois da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) ter chamado a atenção, esta quarta-feira, para a retificação do decreto-lei n.º 20/2020 que define o regime excecional de proteção no âmbito do novo coronavírus, onde os diabéticos deixaram de ser mencionados.

António Lacerda Sales justificou esta decisão com a diferença entre diabéticos descompensados e compensados, mencionando que os primeiros (quem está em risco, segundo o governante) são classificados como doentes crónicos, designação que consta no referido decreto-lei.

"Os diabéticos e os hipertensos de Portugal podem ficar tranquilos e confiantes", prometeu. "Estes doentes são essencialmente compensados. O facto de estarem compensados, porém, não significa que a qualquer momento não possam vir a descompensar. Sempre que isso puder vir a acontecer, essa situação estará com certeza coberta pelo chapéu das doenças crónicas", acrescentou.

[atualizada às 14.58 com declarações do secretário de Estado da Saúde]

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