Devolver espólio dos museus aos países de origem? Só vendo "caso a caso", diz especialista

O diretor do Museu de Etnologia, Paulo Costa, diz que para haver restituição dos bens patrimónios às ex-colónias deve-se analisar "caso a caso". E sublinha a importância que estas coleções tiveram para que os europeus tivessem conhecimento do mundo.
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Cada caso deve ser analisado na sua especificidade, nada pode ser definido por decreto. Esta seria a resposta que Paulo Costa, o diretor do Museu de Etnologia, daria à proposta da deputada do Livre, Joacine Katar Moreira, que quer que todo o património das ex-colónias, que esteja atualmente na posse de museus e arquivos nacionais, possa ser restituído aos países de origem de forma a "descolonizar" museus e monumentos estatais.

Ao DN Paulo Costa garante que "até ao momento não foi feito qualquer pedido de restituição de bens culturais a Portugal nem especificamente ao Museu de Etnologia". No caso de isso acontecer, o que terá de ser feito por cada país através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, este especialista recorda que já existe legislação em Portugal sobre o assunto, devidamente enquadrada por uma convenção da UNESCO e por legislação europeia e completada, sempre que necessário, com tratados entre os países envolvidos.

Se houver um pedido de restituição, o diretor do Museu de Etnologia considera que tem de se analisar "caso a caso". "É preciso distinguir, por exemplo, as obras que foram retiradas recorrendo à aplicação da força, ou seja fruto de pilhagens, e que se considera que são fruto de alienação indevida", diz. "É preciso dizer que a maioria dos museus não é feita com peças pilhadas", essa é uma ideia errada que algumas pessoas têm. "Há muito ruído sobre este assunto", lamenta Paulo Costa.

Vários museus portugueses albergam peças que vieram de antigas colónias, como a Universidade de Lisboa, que incorporou os acervos do Instituto de Investigação Científica e Tropical (antiga Junta de Investigações do Ultramar, de 1963 e 1985, e Junta das Missões Geográficas e Investigações Coloniais, de 1936). O Museu de Etnologia, em Lisboa, será, provavelmente, a instituição museológica portuguesa que tem no seu espólio mais obras de arte oriundas das ex-colónias portuguesas, assim como de outros lugares do mundo. "São peças recolhidas no âmbito de investigações levadas a cabo pelo museu e que ilustram os modos de vida de outros países", explica o diretor.

Além disso, "não se pode fazer terraplanagem do trabalho importantíssimo que os museus foram fazendo, ao longo de muitos anos, de documentação de outras culturas", diz o antropólogo. "A maioria dos museus do iluminismo nasceu com um projeto científico, de conhecimento e de cartografia do mundo. E o mundo só se conheceu a si mesmo através dos museus. Hoje, que temos internet e tudo está disponível, pode parecer-nos que são desnecessários e que tudo isto não tem interesse, mas foi assim que conhecemos outras culturas e outras civilizações."

E, especificamente os museu de etnologia, "alguns deles com muitos erros pelo caminho porque eram museus coloniais - não é o caso deste, que nasceu já nos anos 60 e aprendeu muito com a experiência dos outros -, tiveram um papel essencial na reflexão sobre a sociedade contemporânea", sublinha, referindo que o conhecimento de culturas diferentes é essencial para desenvolver a tolerância entre os povos. "Não se pode desvalorizar a importância institucional e civilizacional dos museus."

A ideia de restituição de todo o património das ex-colónias em território português, além de levantar variadas questões do ponto de vista legal, levanta ainda outro debate: "Isto quer dizer que em Portugal só pode haver obras de arte produzidas em Portugal? E em Espanha só obras de arte produzidas em Espanha?", pergunta Paulo Costa. Num mundo global fará sentido "nacionalizar" a arte?

Debate começou em França

A ideia, subscrita pela parlamentar única do Livre, Joacine Katar Moreira, está inserida numa proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2020 que pretende implementar um programa de "descolonização da cultura" e uma "estratégia nacional para a descolonização do conhecimento", valores presentes no programa do partido para as legislativas de 2019. A elaboração da lista do património a ser restituído estaria a cargo de uma "comissão multidisciplinar composta por museólogos, curadores, investigadores científicos (história, história da arte, estudos pós-coloniais e descoloniais) e ativistas antirracistas", que teria também como objetivo "forjar diretivas didáticas para a recontextualização das coleções dos museus e monumentos nacionais" de forma a "estimular uma visão crítica sobre o passado esclavagista colonial, reenquadrando-o e recontextualizando-o à luz das mais recentes investigações académicas", pode ler-se na proposta.

Para o partido da papoila, tendo em conta o passado colonial português, esta é uma oportunidade para o país de "fazer parte destes debates ao nível institucional" e "escolher ser parte de um movimento que congrega a procura de justiça histórica, ao mesmo tempo que responde às necessidades e desafios do tempo presente".

A ideia não é nova. Paulo Costa recorda que muitas destas dúvidas foram suscitadas pelo relatório Savoy-Sarr, elaborado pelos especialistas Felwinw Savoy e Bénédicte Sarr, a pedido do presidente francês Macron, em 2018. Esse relatório defendia a restituição de mais de 90 mil peças, a maioria localizada no Museu do Quai Branly-Jacques Chirac, em Paris, e citava ainda outros grandes museus europeus que também têm coleções africanas, entre os quais o Museu Real da África Central da Bélgica, o Museu Britânico, o Weltmuseum/Museu do Mundo de Viena e o futuro Fórum Humboldt de Berlim.

Essas posições "têm tido eco em todos os países que tiveram colónias" em África e não só, explica Paulo Costa. Por exemplo, um mês depois, Angola confirmou a intenção de ver restituídos bens culturais oriundos deste país africano. "É imperioso que a diplomacia angolana em colaboração com o ministério da Cultura e outros departamentos ministeriais, possa dar início a consultas multilaterais com vista a regularizar a questão da propriedade e da posse, por um lado, e, por outro lado, da exploração dos bens culturais angolanos no estrangeiro", disse a então ministra da cultura de Angola, Carolina Cerqueira.

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