"Devia avançar-se para uma Proteção Civil militarizada"

António Almeida Henriques teve Viseu rodeada de chamas, vindas dos concelhos vizinhos. Crítico da atuação da Proteção Civil (PC), defende agora a militarização dessa estrutura.
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O distrito de Viseu foi muito atingido pelos fogos. Como está a situação?

Passou praticamente uma semana e já notei duas situações anormais: as comunicações continuam completamente... é quase impossível manter uma conversa ao telemóvel ao longo do IP3. E um facto muito insólito foi ver que em Penacova já há cortes maciços de árvores. Daí a preocupação de o Governo ter medidas imediatas para proteger o preço da madeira, porque a existência de muita madeira ardida faz depreciar o preço e, no fundo, estamos a beneficiar quem possa estar a cometer o crime económico de, através dos incêndios, fazer baixar o seu preço. O incêndio foi de domingo para segunda... Para além de ser notório haver pontos ainda a fumegar e há que ter atenção à próxima semana, se a temperatura voltar a aumentar.

A paisagem é desoladora...

Há um aspeto muito preocupante que é o risco de desertificação e de despovoamento. Muitos destes territórios são de baixa densidade populacional e sem atuação imediata do Governo para manter a capacidade produtiva das empresas, sobretudo das que foram destruídas, há o risco de se perderem algumas delas. Depois temos de acelerar a reconstrução e, se não houver medidas imediatas que permitam, por exemplo, um layoff controlado e ao mesmo tempo ações de formação dadas a esses trabalhadores, as pessoas que ficarem sem emprego vão rapidamente abandonar estes territórios, despovoando-os ainda mais. Outro aspeto relevante do ponto de vista económico é a paisagem. Muitos destes territórios tinham na paisagem o seu principal ativo e desapareceu.

Com efeitos negativos no turismo...

É necessário atuar, sobretudo numa perspetiva de reflorestação, pois é preciso recuperar a floresta e a paisagem que leva a que os turistas procurem estes territórios. Também há o fator segurança... um dos relatos que tive foi na Aguieira, em que estava o complexo todo rodeado de fogo e cheio de turistas. Essa imagem fica e é preciso alterá-la, para que estas regiões não sejam mais penalizadas.

Reflorestação com mais eucaliptos?

Não sou especialista dessas áreas. O que deve ser definido é o cadastro. É fundamental investir para as coisas terem outra consistência. É caro? É, mas fica para sempre. Defina-se um bom programa de reflorestação, apostando nas espécies com mais valia económica mas que ao mesmo tempo tenham menos efeito de combustível. Agora, tem de ser feita de forma ordenada e que facilite o combate ao incêndio. Se nada for feito, a seguir ao inverno a natureza autorregenera-se. Sem intervenção, o que vai acontecer é que vai fazer-se mais uma vez de forma espontânea e desordenada. É preciso atuar de imediato porque estão em causa duas questões: a reflorestação e o combate à desertificação, porque hoje há paisagens desertificadas do ponto de vista das espécies vegetais.

Como vê o relatório da Comissão Técnica Independente?

É um contributo muito positivo e um dos aspetos que aborda é exatamente a estrutura da Proteção Civil. Muito do que tem falhado foi ao nível da PC, seja na coordenação dos meios, seja na alteração de uma grande parte das chefias a dois meses do início dos fogos, não se criando rotinas de coordenação entre as novas chefias. Isto reflete-se no terreno e essa parte da estrutura deve merecer reflexão... defendo mesmo que deveríamos aproveitar melhor as Forças Armadas. Defendo estruturas de PC descentralizadas, eventualmente uma no norte, no centro e outra no sul, com meios autónomos de combate a incêndios e coordenação efetiva, de proximidade, com forte envolvimento das autarquias porque conhecem melhor o terreno. Seja na prevenção seja na vertente do combate aos incêndios, a criação destas unidades autónomas podem ser até militarizadas, aproveitando as Forças Armadas, com a disciplina existente, com o know-how instalado, a capacidade ao nível de homens... e até militarizar a lógica da PC, articulando-a com os bombeiros e as autarquias numa perspetiva intermunicipal porque o fogo não conhece fronteiras. Por outro lado, é preciso apostar em equipas profissionalizadas. Isso é fundamental, do ponto de vista do combate e para o trabalho no ano inteiro. Por exemplo, há algum anacronismo em defender-se a aposta na profissionalização e a câmara de Viseu ver chumbada pelo Estado central uma proposta de criar uma equipa de sapadores florestais. São equipas que façam o trabalho de prevenção ao longo do ano, de sensibilização das populações, que ajudem a identificar os locais onde o mato está crescido, a fazer a limpeza da floresta que é do próprio Estado e depois, na época dos incêndios, estejam no combate. E é importante uma formação mais intensa dos homens que andam no terreno. Essa é uma questão operacional que tem de ser acautelada.

Falou nas Forças Armadas. Defende uma unidade específica para os fogos?

Face à forma como isto tem acontecido e à experiência que temos, até de ver no comando algumas pessoas ligadas às Forças Armadas, defenderia mesmo neste momento que se pudesse avançar para uma PC militarizada.

Que responsabilidades têm as autarquias? Não podiam ter feito mais?

Em Vouzela, considerada exemplar na abordagem da floresta, em sete horas o fogo consumiu 80% da sua superfície. Em Tondela, o fogo atravessou o concelho em quatro horas... estamos a falar de situações críticas. Agora pode haver maior exigência. Por exemplo, a notificação de quem está em prevaricação tem de ser uma regra, não uma exceção. Deve ser obrigatório, quase numa lógica de criminalizar o facto de não se notificar, para que seja mandatório para as próprias autarquias. Mas também é preciso dar-lhes meios para fazerem um trabalho mais exigente na prevenção e também ao nível da propriedade, para que quando não se consiga identificar a propriedade dos terrenos se possa atuar, obviamente sempre com mandato judicial mas com mecanismos mais céleres que permitam a apropriação, nem que seja transitória, de um território. O proprietário que não se conseguir descobrir ficaria com um prazo de 15 ou 20 anos para reclamar a posse do terreno, assumindo os custos em que a autarquia incorra.

Defende a expropriação dos terrenos?

Sou defensor da propriedade e se é privada deve ser cuidada como privada. Se tenho um terreno, tenho de assumir os direitos e as responsabilidades. Agora se a autarquia, ao notificar, não o conseguir a bem, tem que o fazer a mal e a lei já permite substituir-se ao proprietário e depois imputar-lhe a responsabilidade. E se o proprietário não pagar há depois o recurso à execução. Devem criar-se mecanismos para as situações em que o terreno não é de ninguém. Também é mais fácil proteger a floresta se estiver na mão de privados, que sabemos quem são. No caso da que é propriedade do Estado, faz mais sentido que a floresta que está nos baldios, ou a que resulte de uma expropriação (entre aspas com direito de retorno se as pessoas depois a vierem reclamar), que fique sempre na propriedade das autarquias porque são entidades com mais vocação para a ação e, ao mesmo tempo, são fiscalizadas por diferentes vias.

Como mudar os hábitos das populações, nas queimadas, limpeza das florestas, receio de alertar autoridades?

Fizemos nestes quatro anos um trabalho muito intenso com as equipas do Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro da GNR, de sensibilização das populações. Isso tem de ser feito de forma mais intensa porque as pessoas podem agir por ignorância ou desconhecimento da lei. Há ainda a importância que as populações tiveram na ajuda ao combate aos fogos: se lhes dermos mais alguma formação, facilmente se conseguirá ter uma lógica mais eficaz. Passa pela sensibilização, formação e depois pela atuação compulsória, se tiver de ser feito.

Tutelou o Desenvolvimento Regional e teve a gestão dos fundos europeus. Que prioridade teve então a floresta?

Apanhei os fundos comunitários no período da troika, em que a prioridade foi focalizar a ação dessas verbas no apoio à economia e isso foi feito. Outra foi acelerar a sua execução, que estava muito atrasada. Aliás, é no meu segundo ano como secretário de Estado que se atinge o valor mais alto de sempre de execução desses fundos. Na formatação deste quadro comunitário de apoio [QCA] eventualmente não houve capacidade para se sensibilizar, ou mesmo a sensibilidade, para que se definisse como prioridade a floresta. Agora, depois destas catástrofes, Bruxelas estará hoje mais sensibilizada para alocar alguns fundos deste quadro comunitário de apoio e do próximo, não só numa lógica da reflorestação mas de aposta concreta no interior. Temos que criar regimes de incentivos excecionais que fixem as populações. Quanto mais deixarmos despovoar o interior mais riscos destes corremos. É preciso criar incentivos fortes que permitam o regresso das pessoas ao campo, do ponto de vista da exploração agrícola, da vertente florestal, produção de gado... temos de olhar para este QCA e fazer algum redirecionamento para estes territórios, com majorações que não podem ser de 5%, têm de ser superiores e incentivadoras, com sistemas de choques fiscais para que as empresas se possam localizar e mesmo benefícios fiscais em sede de IRS para pessoas que se fixem nestes territórios.

O governo de que fez parte extinguiu os governadores civis, reduziu verbas para as florestas... essas medidas não enfraqueceram a capacidade de resposta do Estado no médio prazo?

Temos sempre de olhar para as medidas que se tomam em função do momento em que se tomaram, em que tínhamos a intervenção da troika e o país estava praticamente falido. Agora, também é preciso fazer outro tipo de avaliação: o meu colega de Tondela dizia [ante]ontem que, para reconstruir tudo o que foi perdido, não chegam 1,5 mil milhões de euros. Ora estive a ver quais foram os números da aposta na PC nos últimos cinco anos e estamos a falar de 1,2 mil milhões... este é um indicador muito interessante de análise, se queremos apostar mais nos meios e na intervenção no terreno ou corrermos atrás do prejuízo. Esta é uma avaliação que se tem de fazer....

Mas houve efeitos negativos...

Sempre que há cortes, em determinado tipo de estruturas deste género, prejudica. Mas uma atitude que também tenho visto nos últimos anos é que os cortes são sempre no interior. Nunca vi um governo, seja ele qual for, dizer "vamos encerrar duas ou três direções-gerais em Lisboa", que muitas vezes têm consumos de orçamento superiores ao somatório de todos os serviços que se fecham pelo interior. É preciso assegurar que haja serviços mínimos que não fechem nestes territórios, sob pena de daqui a uns anos não termos mesmo ninguém. Aliás, há espaços onde se se fechar o quartel da GNR nem sequer uma presença de soberania o país tem, designadamente em territórios de fronteiras.

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