"Desta vez não teremos um marco comparável ao Tratado de Lisboa"

Investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Nova FCSH, Alice Cunha não acredita que a pandemia domine a presidência portuguesa da UE, mas irá condicionar os trabalhos. Destacando a "maturidade" de Portugal, garante que se "vai sair bem".
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Portugal assume hoje a presidência da União Europeia, a agenda social foi apresentada pelo primeiro-ministro António Costa como grande prioridade. Mas, em plena pandemia, este tema não irá acabar por se impor?
Não diria que o tema da pandemia se vá sobrepor a todos os outros. O contexto é que é de pandemia. Os contextos das três anteriores presidências portuguesas da UE foram bastante diferentes. Esta, além da pandemia, que obviamente influencia sobretudo o decorrer dos trabalhos, também vai ser realizada num contexto da saída do primeiro Estado membro da União Europeia [o Reino Unido]. Por outro lado, é o início de uma nova administração norte-americana. Surge 14 anos depois da última presidência portuguesa - e a União Europeia de 2007 não é a União Europeia de hoje. A pandemia é mais uma variável, mas não acho que vá dominar os trabalhos da presidência. Irá, sim, condicioná-los.

É a quarta vez que Portugal assume a presidência da UE - 1992, 2000, 2007 e agora 2021. Contextos muito diferentes. Esta vai ser mais difícil?
Não acredito que seja mais difícil. Mais uma vez, o contexto é que é diferente. Comparando com a de 2007 e também com a de 2000, em que houve dois grandes marcos distintivos - em 2000 a aprovação da Estratégia de Lisboa e em 2007 a assinatura do Tratado de Lisboa -, desta vez provavelmente não teremos um marco comparável a estes dois. Mas teremos a nossa distinção. Portugal está a apostar muito na agenda social, na cimeira social que se irá realizar em maio. E sobretudo na promoção da implementação do pilar europeu dos Direitos Sociais. Portugal pretende otimizar, avançar e dar sequência a esta agenda. Este poderá ser o produto distintivo desta presidência porque os restantes eixos - a resiliência europeia, a Europa Verde, a Digital, a Europa Global - também estão alinhados com a agenda e as prioridades políticas da UE no contexto mais alargado do programa para 18 meses do trio de presidências. À semelhança das outras presidências, esta vai ser um exercício diplomático e político exigente, no qual está em causa a magnitude da tarefa mas também a visibilidade do país. Portugal tem um grau de maturidade elevado no que diz respeito às questões europeias, ao conhecimento dos dossiês e às dinâmicas que se operam dentro do enquadramento institucional da UE. Acho que se irá sair bem.

A presidência portuguesa será muito diferente da alemã, nem que seja em termos de estilo, apesar dessa agenda comum?
De estilo, talvez. Mas muito distinta, talvez não. O contexto também influenciou a presidência alemã, que acabou por ser bastante low profile. Mas cumpriu o programa dos seus seis meses, sobretudo a aprovação do Quadro Financeiro Plurianual e também do Pacote de Recuperação Económica e de Resiliência. Portugal retoma estes dossiês. Irá ser, julgo, mais uma presidência de gestão, de acompanhamento dos dossiês, porque as questões da Europa Verde e da Europa Digital são projetos a médio/longo prazo, aos quais Portugal irá dar o seu contributo no seguimento da presidência alemã e depois passará à próxima presidência, a eslovena, que irá continuar a trabalhá-los. Na UE nada se faz de um minuto para o outro, nem em 18 meses, muito menos em seis meses.

Depois das ameaças de veto da Hungria e da Polónia, o orçamento plurianual e o pacote de recuperação acabaram por avançar. A questão do Estado de direito ficou resolvida por agora?
O que estava em jogo, sobretudo em relação ao Quadro Financeiro Plurianual para os próximos sete anos, era em que medida a aprovação e a distribuição dos fundos estava vinculada a uma condicionalidade democrática. O que os chefes de Estado e de governo acordaram foi que não será tão linear e será uma segunda solução. O que está em vigor e continua é o artigo 7.º - ou seja, se qualquer Estado membro, seja a Hungria, a Polónia ou outros, inferir os valores fundamentais da UE, tal como constam do artigo 2.º, podem ser acionadas sanções ou procedimentos contra esse Estado, que tem o direito de defesa. Na última cimeira, o que aconteceu foi que todos ganharam. Foi aprovado o orçamento comunitário e o plano de recuperação, que é absolutamente essencial para todos os Estados membros, mesmo se para uns mais do que outros, como é o caso de Portugal. Mas essa aprovação não está linearmente relacionada com o mecanismo de condicionalidade. O que irá prevalecer será o artigo 7.º, este mecanismo será complementar. Qualquer Estado, ao aderir à UE, aceita cumprir os requisitos definidos nos critérios de Copenhaga, nomeadamente o Estado de direito. A UE, nesse sentido, continua a ser um projeto de liberdade, de democracia, de respeito pelas minorias, pela liberdade de expressão, pela independência dos tribunais... E quando há indícios de que algum Estado está em falta tem o artigo 7.º para agir.

Uma das bandeiras desta presidência portuguesa é a cimeira UE-Índia. É uma forma de contrabalançar a influência da China?
Não são mutuamente exclusivas. Quando Portugal aderiu à UE em 1986, uma das mais-valias era o bom relacionamento com os países africanos, da América Latina, do Extremo Oriente. Nas presidências anteriores tivemos a primeira cimeira UE-África, cimeiras UE-Brasil, UE-Índia, com a China também. Apostamos muito numa agenda global de relações externas. Claro que desde a aprovação do Tratado de Lisboa, as competências que as presidências rotativas do Conselho têm estão mais limitadas neste campo, porque temos a figura do alto-representante para a política externa da UE. Mas Portugal quer continuar com a aposta na dimensão global. Possivelmente também teremos a cimeira UE-África que se devia ter realizado em outubro, mas foi adiada. Não vejo a cimeira com a Índia como algo rival com a China, mas antes como complementar.

Os EUA têm um novo presidente a partir de 20 de janeiro e todos esperam que Joe Biden aposte mais na relação com a UE do que Donald Trump. Portugal pode ter aqui um papel importante nesta relação?
A política externa de Portugal neste momento está muito centrada no vetor europeu, que é um trabalho a tempo inteiro. Com a tomada de posse da administração Biden, a UE espera de facto o reatar de umas relações mais favoráveis, mais amistosas, que vão mais ao encontro da agenda da UE - nomeadamente a aposta no multilateralismo, no combate às alterações climáticas, a nível comercial também. Existe essa expectativa e Portugal dará o pontapé de partida nesse reatar de relações mais fortes. Mas não diria que terá um papel decisivo. As nossas relações com os EUA nos últimos tempos têm estado algo frouxas em comparação com o vetor europeu.

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