Emanuel Medeiros é natural de São Miguel, Açores, licenciado em Direito e com vasto currículo no dirigismo desportivo. Foi secretário-geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (2000-06) e fez parte da UEFA e da FIFA, além de ser um dos fundadores da Associação das Ligas Europeias de Futebol Profissional, que liderou durante nove anos. É cofundador e coordenador da Sport Integrity Global Alliance (SIGA) - organismo independente com a missão de promover a boa governança e salvaguardar a integridade do desporto..Porquê uma web summit sobre "Liderança Feminina no Desporto"? Trata-se de uma situação de manifesta urgência. A igualdade de género é uma condição sine qua non para a boa governança no desporto, mas pouco ou nada é feito. Depois de ter auditado 80 federações internacionais, constatei que as coisas estão a regredir. Em 2019, por exemplo, a representação feminina em 32 federações olímpicas era de 18,3%, percentagem que desceu para 17,8%, segundo os dados que vamos revelar hoje. Isto é realmente preocupante e não enobrece o desporto, não deve orgulhar os dirigentes e devia alertar patrocinadores e todos aqueles que olham para o desporto como espaço de democracia e igualdade de direitos e de oportunidades..A Carta Olímpica escrita por Coubertin em 1899 já assenta nessa visão de igualdade de género, inclusividade, solidariedade e não discriminação. Mais de 120 anos deviam chegar para mudar alguma coisa... Deviam, e não é aceitável que um setor tão importante seja gerido e governado em pleno século XXI como se estivéssemos no século XIX. Este é um alerta à navegação e uma pedrada no charco que quero dar porque está na hora de passar dos discursos à prática. A situação internacional e mesmo a nível nacional desperta-me um certo fervor d"alma, para não dizer vergonha. Na web summit do SIGA sobre Liderança Feminina no Desporto [de 8 a 10 de março] vamos ter uma centena de mulheres de enorme poder de inspiração, mas também alguns homens, porque os homens fazem parte da equação e da solução..Em Portugal, no total das 67 federações sob alçada o Comité Olímpico de Portugal (COP), há três mulheres na presidência. Das 33 federações olímpicas, só uma (basebol/softbol) é liderada por uma mulher, Sandra Monteiro... Pois... O COP tem sido dinâmico quanto à participação feminina tanto ao nível da competição como nos cargos de liderança, e há alguns exemplos meritórios no futebol, começando pela Federação Portuguesa de Futebol. São boas exceções, mas no geral não é possível ter apenas uma federação olímpica liderada por uma mulher. Mas a realidade mundial é idêntica. Das 32 federações que auditamos, só duas têm liderança feminina. É preciso uma reformulação profunda no dirigismo português, e não me refiro apenas a renovação etária, há que abrir as estruturas federativas às mulheres, ao nível dos clubes, das federações distritais, etc. Eu quando saí da presidência da Liga fui substituído por uma mulher [Andreia Couto] que fez um bom trabalho..O setor ainda é machista e sexista? O desporto continua a ser um bastião masculino, com causas estruturais e de mentalidade retrógrada predominante, que fazem da atividade um pouco fechada sobre si própria, que prima pelos casos em vez de causas. Todos nós testemunhamos situações abomináveis de atentado ao respeito e à competência das mulheres neste meio. Os homens que lideram têm o imperativo dever de democratizar as suas estruturas e evitar que pessoas se perpetuem nos cargos sem escrutínio. São estas coisas que fazem que o desporto em Portugal ainda seja uma coutada masculina, como se fosse uma coisa edificante. Tivemos 49 anos de ditadura e isso deixou marcas, acentuou a cultura masculina dominante, onde cada centímetro das mulheres é conquistado e não concedido. Ainda há muito preconceito inconsciente, filho do medo, do perder regalias e do favor..Como se muda esse cenário? É uma questão de mudar mentalidades ou algo mais profundo e concreto? Em Portugal, a mudança podia e devia começar no governo, que trata o desporto como um setor menor. Veja-se como foi negligenciado na relançamento da economia e nos apoios. É uma questão estrutural. Há uma grande falta de coragem e lógicas de conveniência que se instalam e alimentam o sistema. Outros fecham os olhos, e quando se fecha os olhos é-se conivente, e quem é conivente é responsável. A mudança de mentalidades é vital na inversão desse cenário. Todos nós temos mãe, avó, irmãs, filhas e devíamos ser pela igualdade de direitos e oportunidades delas. Isto só muda com uma cultura de exigência e valorização dos recursos humanos independentemente do género, da idade, do estrato social ou da raça. Porque é que uma mulher tem de receber menos por trabalho igual? Isso é inaceitável. Temos de combater esse fosso de género que ainda existe em Portugal. Não quero apontar o dedo a ninguém, não é pela culpabilização ou pela expiação que vamos provocar essa mudança, mas não podemos fingir que não é nada connosco. A nova geração tem de chegar à frente e acabar com o clima de divisão e fragmentação..Lutar pela igualdade de género e de oportunidades é fraturante e está na moda. Onde fica a barreira de competência e mérito e a quota? Primeiro que tudo é uma questão de decência. A mulher tem o direito de se chegar à frente e reivindicar. O termo "quota" é ambivalente. Por um lado, a situação está tão má que é preciso medidas de discriminação positiva, como as quotas. Para mim têm uma carga estigmatizante e por isso sugeri que a partir das próximas eleições da SIGA, em abril, todos os órgãos diretivos observem a absoluta paridade (50-50). Não quis ser cúmplice do faz de conta. Estou satisfeito? Não. O dia em que eu estiver satisfeito é o dia em que não é preciso falar de quotas, porque o papel da mulher será valorizado sem discriminação negativa ou positiva..Nomear uma mulher, Seiko Hashimoto, na sequência da demissão do presidente de Tóquio 2020, Yoshirō Mori, que tinha feito declarações impróprias sobre as colegas, não é deitar areia para os olhos? Essa pergunta suscita várias respostas. Por um lado deixa subliminar que algumas escolhas obedecem à pressão do politicamente correto, como se colocar lá uma mulher apagasse o que foi dito sobre as mulheres por um homem. E nem as mulheres se devem deixar instrumentalizar, como se fossem troféus. Percebo que muitas delas se debatam com este dilema: se aceitar está a legitimar uma cultura de aparência, se recusar perde a oportunidade de tentar inverter o rumo dos acontecimentos e influenciar ela própria o caminho. Uma coisa é certa, lutar pela igualdade de género não é coisa que se possa confinar a um dia internacional de... é uma coisa de todos os dias, que se ensina em casa, à mesa, na escola...