Diz que está como deputada e não que é deputada. "Estou, simplesmente. E provavelmente pela última vez." Tem 57 anos, os 58 chegarão em novembro, e mais de 30 no exercício da advocacia. O tempo divide-o entre o Parlamento e o escritório. Não fala da vida privada, diz apenas que se tivesse de definir uma religião para si seria a do "Deus das pequenas coisas". Em caso de sofrimento extremo, não teria dúvidas em pedir a eutanásia. Confessa que não tem assinada uma declaração de testamento vital, porque "o debate não está todo feito", mas, se a despenalização não passar, "é claro que irei assinar". Assume-se social-democrata e é à luz dessa ideologia que defende a eutanásia como um direito de liberdade individual..É advogada, social-democrata, ex-ministra da Justiça. É à luz da ideologia que defende a eutanásia?.Naturalmente que sim. Defendo como uma liberdade individual, um direito. Nós ouvimos falar de eutanásia e não nos podemos esquecer que a palavra vem do grego, significa "boa morte". Defendo que a vida compreende inevitavelmente a morte. Assim sendo, todos nós temos o direito de dispor da forma como queremos terminá-la. E devemos ter esse di-reito..Os instrumentos legais que existem hoje, como o testamento vital, não são suficientes?.Não, não são. O testamento vital é importante, na medida em que permite definir, a quem quer rejeitar determinados tratamentos, como quer que o façam. É uma eutanásia passiva, mas está longe de ser suficiente para garantir a liberdade de escolha de um fim de vida com dignidade. Eu não tenho a obrigação de viver, eu tenho o direito a viver. Portanto, se tenho o direito de viver, tenho de ter também o direito de querer estipular como é que a minha vida acaba. Aliás, considero que temos estado a discutir esta matéria pelo lado do direito penal, só a mera despenalização, o que no meu ponto de vista é um erro. Não chega. Devíamos estar a discutir o assunto no âmbito dos direito e das liberdades que nos assistem..É um debate redutor?.Muito. Despenalizar não chega. Ou melhor, para chegar à despenalização é preciso ter uma conceção do direito à boa morte. A vida humana é inviolável, mas não é irrenunciável. Isto é muito importante. É muito importante que a discussão se passe a centrar no direito à boa morte como um direito de facto, mas no âmbito do direito civil, e não como uma questão penal. É óbvio que teremos de ter certos cuidados para não se entrar naquilo a que agora se chama "rampa deslizante", em abusos, mas a liberdade e a dignidade têm de prevalecer..Se nos centrarmos na área do direito civil, a Constituição, que define a vida como um valor absoluto, não terá de ser alterada?.A vida compreende a morte e todos sabemos que a morte é o destino da própria vida. O direito à vida é inviolável por terceiros, mas coisa diferente é podermos dispor da forma como queremos terminar a nossa vida. Isto é, como queremos conceber o final dessa mesma vida. Eu não tenho obrigação de viver. Eu tenho o direito a viver. Quando se diz que a vida humana é inviolável, é inviolável por terceiros..Se a vida não é irrenunciável, em que situações se pode aceitar a morte assistida? Não é só em estado terminal?.Na minha perspetiva, não. Eu estou para além do que está dito nos próprios projetos que estão em cima da mesa. Mas isso, se quiser, é uma conceção filosófica, existencialista. Ainda na semana passada tivemos notícias de um cientista australiano, com 104 anos, David Goodall, que entendeu que não queria continuar a viver e dizia: "Triste é querer morrer e ser proibido de o fazer.".Tem conhecimento dos casos que estão a agitar a Bélgica e que muitos dizem estar no que chamam de "rampa deslizante" - um adolescente deficiente para quem os pais pediram a eutanásia, uma mulher jovem com uma depressão profunda...A legislação sobre a eutanásia pode levar a estas situações mais abrangentes?.Não podemos confundir o direito à boa morte, como gosto de dizer, com situações de homicídio ou com situação eugénicas. Vamos separar as questões. Isso são crimes. O que me parece é que a questão da chamada "rampa deslizante" tem de ser muito bem limitada..E como é que isso será possível?.É possível regulando as situações muito bem, quer para alguém que possa estar em estado terminal e que deseja optar pela boa morte quer para alguém que sente que a sua vida já não faz nenhum sentido. Devo dizer que sobre esta matéria eu até vou um bocadinho para além do que está a ser discutido. Mas entendo que, antes de alguém exercer o direito à boa morte, tem de haver, naturalmente, uma avaliação profunda da pessoa, da situação em que se encontra e atestar se não há um meio alternativo. Não estou a falar dos cuidados paliativos como alternativa. Esses são muito importantes, mas são diferentes..Então fala de quê?.Por exemplo, no caso que citou, de uma pessoa que está com uma grande depressão. É preciso saber se é possível curar essa pessoa ou minorar o seu sofrimento. Há um conjunto de passos que têm de ser dados para não se transformar o direito a morrer numa situação de eugenia ou numa situação de homicídio. Falamos de coisas completamente diferentes..Será preciso uma fiscalização do Estado, mas como?.Claro que tem de haver fiscalização. Sobretudo estabelecer-se penas severas para situações que são de eugenia ou de homicídio..Quando disse que vai um pouco mais além do que está a ser discutido, defende, por exemplo, que a eutanásia possa ser praticada por profissionais de saúde e por terceiros? Em unidades públicas, privadas ou em casa?.Naturalmente que sim. Admito mesmo que possa haver situações em que a boa morte possa ser praticada por terceiros. Falamos muito do direito à boa morte, mas só em casos de sofrimento extremo. Mas imagine alguém que é um preso político, que está numa cela com outrem, que sabe que vai ser torturado e que pode denunciar terceiros. Não tem direito a pedir assistência à pessoa que está com ele para lhe pôr fim à vida? Pois é, a questão é muito mais complexa do que a que está a ser discutida. Nós só estamos a discutir uma vertente do direito à morte, que são as situações terminais, com sofrimento extremo. Mas, na verdade, este direito tem várias vertentes..Consigna portanto que na legislação possa estar incluída uma situação de estado terminal e que o pôr fim à vida pudesse ser feito em casa e por quem está ao seu lado?.Na minha perspetiva, isso deveria ser incluído. Nos atuais projetos, não está garantido. Eu entendo que este direito se estende não só a situações de doença como a outras. Reconheço que o que está a ser discutido já é um avanço, mas naturalmente admito outras situações..Há quatro projetos - PAN, PEV, BE e PS - em discussão. Identifica-se mais com algum deles?.No atual estado de arte, não tenho uma identificação total com nenhum, até pelas razões que referi. Mas penso que em todos há virtualidades..Vai votar a favor ou abster-se?.Vou votar a favor, a menos que seja introduzida alguma alteração com a qual não esteja de acordo..E se o PSD não desse liberdade de voto?.Votaria na mesma a favor, como já fiz noutras circunstâncias em que houve disciplina de voto. Votaria segundo a minha consciência, sujeitando-me depois ao processo disciplinar..O resultado pode depender dos partidos que não deram liberdade de voto....Espero que o debate não seja mais uma vez adiado em nome de muitos que sofrem e que sofrem a vários títulos. Penso que existem condições para que haja um processo estruturado e que seja votado favoravelmente..A sociedade aceitará bem a votação ?.Penso que a sociedade já interiorizou que as pessoas não devem ter uma má morte. Quantas vezes nós ouvimos dizer, mesmo de quem tem um ponto de vista religioso: "Deus o leve." Isto quer dizer o quê? Ponham termo a este sofrimento. Com toda a franqueza, penso que esse sentimento já está interiorizado socialmente. As pessoas não gostam de ver sofrer familiares, nem terceiros..Em dezembro, defendeu que o debate sobre a morte assistida deveria ser alargado. Partindo do princípio de que o que está a ser discutido se centra na despenalização e não na base do direito de liberdade, como defende, acha que o debate foi feito?.Na minha opinião, sobretudo nos últimos meses, o debate foi francamente alargado e penso que há condições para legislar a matéria transversalmente tanto quanto possível. O que quero dizer com isto? Que, encarando eu o direito à boa morte como um direito à liberdade, os partidos deveriam transversalmente unir-se em torno desta questão e consensualizar, respeitando naturalmente as suas divergências.