Todos os dias, milhares de pessoas pisam verdadeiras telas artísticas que pintam um retrato das glórias de outros tempos no chão de Lisboa. A calçada portuguesa, com quase dois séculos de vida, embeleza a cidade e faz dela cenário predileto para milhares de turistas todos os anos. "É muito bonita a nossa calçada. Mesmo sendo quase toda branca tem os desenhos, reflete muito a luz e dá vida", diz ao DN o calceteiro Vítor Graça. Aos 53 anos, continua a dobrar-se diariamente para fazer arranjos ou para desenhar novos motivos com pedra calcária. "Desde que quiseram passar a calçada a património [da UNESCO] e que os turistas começaram a vir, valorizou-se mais esta arte", atira. Preservar e divulgar este ofício é precisamente o objetivo central do peddy paper que a Escola de Calceteiros vai organizar no próximo dia 20 de junho. "A ideia é que as pessoas se divirtam aprendendo", assegura Ana Baptista..A iniciativa já acontecia em anos anteriores, mas a pandemia obrigou a repensar o modelo da atividade, que desta vez é exclusivamente para famílias. "Quando a família chega ao Rossio, fazemos o acolhimento e entregamos uma pasta com um mapa, uma folha com perguntas, uma folha para desenho e ainda informação técnica e histórica para poderem consultar ao longo de todo o trajeto", explica a técnica superior de comunicação. Explicadas as regras do jogo, é tempo de arrepiar caminho por um dos cinco percursos disponíveis na Baixa Pombalina e manter os olhos bem abertos, porque há desafios a superar antes de chegar à meta. "Vão fazendo as provas de observação e identificação dos motivos da calçada ou de elementos que passam despercebidos às pessoas no seu dia a dia", descreve. No final, cada grupo recebe uma lista com as respostas certas e poderá esclarecer dúvidas com os orientadores da prova, Ana Baptista e Nuno Serra, formador na Escola de Calceteiros. As inscrições são gratuitas, através do e-mail escoladecalceteiros@cm-lisboa.pt, e encerram hoje..Característica cultural do país reconhecida internacionalmente, a calçada portuguesa conjuga as componentes funcionais e decorativas que, diz Nuno Serra, bebe inspiração nos mosaicos romanos. "O surgimento da calçada artística está muito ligado à arte romana e aos seus mosaicos, deriva daí em termos estéticos", partilha. Os desenhos que adornam a pedra que todos pisam compõem o elemento que mais agrada este técnico superior de Engenharia Agrícola e Belas Artes, a par com o método apurado que requer para uma aplicação irrepreensível. "A calçada é feita com pedras partidas de diferentes geometrias, sendo que a qualidade e o rigor do corte da pedra é algo muito importante", sublinha..A origem desta expressão artística como a conhecemos remonta ao século XIX. De acordo com António Prôa, secretário-geral da Associação da Calçada Portuguesa, "o sistema das calçadas-mosaico foi concebido pelo governador de armas do Castelo de São Jorge, o tenente-general Eusébio Furtado, que é considerado o seu inventor". Terá sido por sua iniciativa que se construiu, no início da década de 1840, o calcetamento da parada militar no castelo com recurso a mão de obra garantida pelos prisioneiros. "O sucesso foi tal que transitou para a via pública com a pavimentação da Rua de Santa Cruz do Castelo e, em 1844, da Calçada do Marquês de Tancos", explica. Quatro anos mais tarde, em 1848, seria iniciada aquela que é, ainda hoje, considerada a obra maior da calçada portuguesa: a Praça do Rossio. "O motivo criado na altura, chamado Mar Largo, ainda é o padrão que se encontra na praça", atesta Ana Baptista. A Praça do Império, em Belém, é outro exemplo. "Os motivos estão todos ligados aos descobrimentos marítimos, porque foi feita de propósito para a Exposição do Mundo Português", contextualiza Nuno Serra..Toda esta bagagem histórica que a calçada carrega justifica que, em março, a Associação da Calçada Portuguesa tenha proposto inscrever este ofício no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial para divulgar e preservar a tradição. "Trata-se de um passo prévio obrigatório para preparar o objetivo de candidatar a calçada portuguesa a Património da Humanidade [da UNESCO]", diz António Prôa. Porém, alerta, este ofício depende de "um saber fazer específico" que está em "risco de extinção" pela diminuição de profissionais no mercado. Segundo a associação, o município de Lisboa tinha, em 1927, cerca de 400 calceteiros ao seu serviço. Em 2020, existiam apenas 19 trabalhadores e, destes, apenas 11 estavam efetivamente a exercer funções. "A profissão é dura e, sobretudo, mal remunerada e de fraco reconhecimento social", reconhece o presidente..A Escola de Calceteiros é um dos poucos locais em Portugal onde é possível frequentar um curso de certificação para o exercício da profissão, que, diz Ana Baptista, regista uma "diminuição" de inscritos. "É uma profissão difícil, não é das mais bem remuneradas e não alicia muitas pessoas", refere. Para inverter esta tendência, a instituição procura sensibilizar a população, em particular as camadas mais jovens, para a importância cultural e artística da calçada portuguesa. "Às vezes chegam-nos formandos obrigados pelo IEFP e alguns deles sentem uma atração por este lado criativo e acabam por gostar", conta a responsável..Vítor Graça, pelo contrário, inscreveu-se de livre vontade porque, diz, queria aprender a colocar calçada e mudar de vida ao fim de quase 50 anos. De lá para cá, trabalho não tem faltado, garante. "Existe muita procura das câmaras e juntas de freguesia, mas até por empresas privadas e no estrangeiro", afirma. Questionado sobre o que mais o apaixona, não hesita em apontar o dedo aos desenhos. "Eu é que faço os moldes dos trabalhos, depois há que ter imaginação. Ainda agora, em Alverca, fiz um José Saramago que ficou lindo", afiança.. Vítor Graça, de 53 anos, apaixonou-se pela componente artística da calçada portuguesa e abraçou, sem arrependimentos, o trabalho árduo de calceteiro..Por que razão decidiu abraçar a profissão de calceteiro com quase 50 anos? Tinha uma empresa de peixe e com a crise financeira fui à falência. Ainda fui para Cabo Verde tentar a minha sorte. Abri um restaurante, mas aquilo também não deu em nada. Entretanto fui para a Holanda, em 2009 ou 2010, e foi aí que comecei a prestar mais atenção aos passeios. Comecei a procurar informação sobre a calçada portuguesa e apaixonei-me por isto. Quando voltei a Portugal procurei inscrever-me na Escola de Calceteiros e acabei o curso em 2015. É um chão único e havia possibilidade de ter muito trabalho, que era o que procurava..O que é que gosta mais na calçada portuguesa? Quem conheça um bocadinho da Europa, sabe que lá fora é tudo muito escuro e o clima é muito cinzento. É tudo em cimento, torna tudo mais escuro. É por isso que os turistas vêm [a Lisboa] e gostam, porque a pedra reflete muita luz e tem os desenhos... Acho que voltou a chamar a atenção das pessoas para a calçada..Tem tido muito trabalho nesta área desde que terminou o curso? Sim, até antes de acabar o curso arranjei logo colocação para trabalhar e tenho continuado desde aí. Estou sempre a ser solicitado para pequenos arranjos e até para vivendas. Trabalho sempre ao mesmo ritmo, devagarinho, que é para ficar bem feito. Antigamente, uma equipa de calçada era composta por três ou quatro homens e cada um tinha a sua função. Hoje não, o calceteiro tem de fazer tudo. Não tenho auxiliares, faço sempre o meu trabalho sozinho..dnot@dn.pt