Defesa da Festa do Avante!

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Não deixa de ser irónico que, tendo eu participado (na medida da minha juventude) no 25 de novembro de 1975, seja hoje censurado por não referir essa data com o fervor religioso que agora se exige, levando mesmo a apagar o próprio 25 de abril.
A resposta é muito simples: quando vemos a Iniciativa Liberal mencionar positivamente o desgosto expresso na altura por Jaime Neves de "não ter sido levado até ao fim o 25 de novembro", lembramo-nos bem da luta que Melo Antunes e Ramalho Eanes travaram nessa noite contra a tentativa de golpe de extrema direita, que a proposta de Jaime Neves e seus companheiros no sentido de ilegalizar o PCP e as forças políticas de extrema esquerda trazia consigo.

Havia que conter um desvio antidemocrático, e esse foi o mérito dos Nove, de Ramalho Eanes, dos verdadeiros democratas. Não se podia aceitar em democracia a proibição de partidos, como a proposta de Jaime Neves fazia. Melo Antunes veio no dia seguinte declarar que "o Partido Comunista era essencial para a nossa democracia", o que conteve os extremismos, mas vitimou politicamente este homem fundamental do 25 de abril e do 25 de novembro. A extrema direita não lhe perdoou...

Houve um 25 de novembro dos democratas e um 25 de novembro da direita antidemocrática e felizmente venceram os primeiros! Não faço a injustiça de pressupor que a Iniciativa Liberal esteja na área antidemocrática: sugeria-lhe só que se informasse melhor historicamente...

É a detestável vaga anticomunista em curso, que faz o amálgama entre o PCP e a política de Putin, que me leva a evocar estes momentos fundadores da nossa democracia.
Expor ao repúdio e à condenação geral a Festa do Avante e os artistas que nela participam, identificando-os com a política atual da Rússia, é um ato condenável e um momento triste para a nossa convivência democrática.

A verdade é que o PCP não se identifica naturalmente com o regime autoritário nacionalista conservador e profundamente anticomunista que domina presentemente a Rússia. Mas é verdade também que persiste no PCP (e em alguma esquerda) um antiamericanismo básico e míope, que pode levar a apostar em potências radicalmente antidemocráticas, como a China e a Rússia, para combater o risco (visto como o perigo principal) de um mundo unipolar comandado pelos Estados Unidos. Do mesmo modo que Churchill se aliava "com o diabo" (leia-se Estaline) para eliminar Hitler, do mesmo modo o PCP prefere todos os diabos e diabinhos que possam contrariar o poder norte americano...
Os Estados Unidos defendem naturalmente os seus interesses como potência e, mesmo que a democracia inspire o presente governo de Washington, arriscamo-nos a que uma reeleição eventual de Trump possa voltar a pôr em questão todos os nossos pressupostos e parâmetros! Mas os Estados Unidos são uma grande democracia, não são o Império do Mal, como não são também o Império do Bem...

Falando da ilusão de Impérios do Bem, a verdade é que o PCP continua a considerar uma perda para o socialismo e para a causa dos trabalhadores a erosão, diria mesmo putrefação, do regime soviético ocorrida sob Gorbatchov. É uma pura visão da História enquanto mito e volta os comunistas para o passado...

Mesmo quem considera a agressão russa como bárbara e ilegítima e a defesa da Ucrânia como justa e necessária será considerado aliado de Putin, caso exprima a menor reserva ao regime de Zelensky ou à estratégia ocidental. Neste contexto polarizado e redutor, é claro que estas posições do PCP teriam que levantar, não apenas as críticas que eu aqui lhes faço, mas sobretudo uma intensa campanha de ódio, que usa o amálgama mais primário para expor uma força política democrática ao ostracismo.

Quando pôr em dúvida a bondade democrática da Ucrânia ou o altruísmo internacionalista dos Estados Unidos é identificado como um apoio a Putin, isso significa que passámos da justiça ao fanatismo. Tal como em 25 de novembro de 1975, não é o fanatismo que eu quero para o meu país.


Diplomata e escritor

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