Fanica está sentada frente a uma terapeuta, a outra está sentada no chão, de lado. O calor tropical ficou do outro lado da porta. Na sala de reabilitação cognitiva e da linguagem há o calor das emoções. "Cál-ca-nhá", diz a menina de forma pausada, para de seguida soltar o riso no final do exercício superado, depois de usar a língua como pedido por Adja e Aissato, as quais respondem com palavras de estímulo e sorrisos..Como todas as outras crianças guineenses com necessidades especiais, Fanica não tinha um local para melhorar a sua condição. A resposta surgiu com a inauguração, em 2020, do Centro de Reabilitação e Desenvolvimento da Criança, um projeto da organização não governamental AIDA. "Estes meninos não tinham resposta no sistema de saúde, que é frágil e está formatado para a doença aguda. Estes meninos precisam de atenção para o resto da vida", diz a coordenadora do centro, Filipa Gonçalves..Apesar de registar progressos, a Guiné-Bissau figura na lista de países com maior mortalidade neonatal. Em 2018, segundo a UNICEF, em cada mil nascimentos 26 acabavam em óbito no parto ou nos 30 dias seguintes. Outro problema decorrente da maior parte dos nascimentos ocorrer fora da maternidade são as complicações degenerarem, em muitos casos, em problemas de neurodesenvolvimento. É aqui que entra o Centro de Reabilitação e Desenvolvimento da Criança..DestaquedestaqueEm muitos casos, quando os pais se apercebem da deficiência da criança abandonam a mulher. Noutros, a mãe tem de fugir para evitar o infanticídio. Daí a importância dos técnicos sociais do centro..O caso de Fanica é uma exceção: foi o tio quem a levou para a sessão. Por norma são as mães quem o faz. "Estas crianças são muito estigmatizadas, são consideradas crianças-irân, acredita-se que são espíritos maus quando se babam ou têm o corpo mole. Quando os companheiros percebem que os meninos têm estes problemas abandonam as mães. A maior parte são mães sozinhas, por isso há um trabalho social difícil, porque as mulheres estão rejeitadas", diz a coordenadora do centro. Mais do que abandonadas, algumas são ameaçadas e têm de fugir com o filho. A prática de infanticídio subsiste entre as etnias animistas, pelo que a associação tem ao dispor, não longe do edifício do centro, uma casa de passagem para acolher casos urgentes de até cinco mulheres..Outra dificuldade reside em passar a mensagem sobre o quadro clínico, apesar de ser explicado no início da reabilitação. "É difícil de trabalhar com as mães porque têm a expectativa de que as crianças vão ficar perfeitamente bem." Até à chegada ao centro, em momento algum os outros profissionais de saúde explicaram que incapacidade têm os filhos. "O que fazemos é explicar o que se passa e assinar um contrato de reabilitação onde dizemos que não curamos ninguém.".Se os terapeutas são enfermeiros que receberam formação em reabilitação, há uma política para contratar as mães ou irmãs de crianças com perfil para técnicas sociais e educadoras na chamada escolinha de reabilitação. Filipa Gonçalves destaca o papel dos técnicos sociais, "o grande pilar do centro". São estes quem faz visitas domiciliárias quando a criança começa a faltar às sessões, ou quando perde peso. "Costumamos dizer "Quando as mães estão bem, as crianças estão bem".".Para isso também contribui a escolinha de reabilitação, em funcionamento desde outubro. "As mães vêm de muito longe e o tempo que demoram a chegar quase não compensa. Então decidimos criar grupos de meninos que fazem terapia numa hora e depois passam o resto da manhã na escolinha. Aqui aproveitamos para trabalhar não só num jardim de infância adaptado, como também nas questões de higiene, autonomia, alimentação, ensinar as mães como devem alimentar ou posicionar as crianças", explica Gonçalves. As mães vão estando na escolinha rotativamente para poderem ter tempo para elas, outra prática seguida pela ONG cujo currículo na Guiné-Bissau se cimentou com a construção de 18 escolas ao longo da fronteira com o Senegal..A coordenadora do centro ingressou na AIDA em 2017, mas já estava a viver na Guiné-Bissau. Há muito concluíra que "em Lisboa há muitas filipas" e que podia fazer a diferença na Guiné, depois de ter estudado psicologia no ISPA, trabalhado na área social na Amadora e especializado em neuropsicologia..A primeira visita foi em 2011, em Bolama, onde participou num projeto de educação para a saúde pela AMI. Regressou no ano seguinte pela mão da Caritas para ajudar a transformar 25 centros de apoio nutricional em unidades de apoio à criança e à família. "Foi uma fase muito gira, percorri a Guiné toda. O meu trabalho foi falar com as pessoas, dar formação e perceber o que se tinha de mudar." Uma experiência marcante, na qual andou muitas vezes sozinha pelo interior do país, e que se prolongou até 2016. "Hoje tenho as coisas muito claras em relação ao que é prioritário.".A vida de Filipa Gonçalves assentou em Bissau, onde conheceu o marido Pedro, professor e formador de docentes em língua portuguesa, e com o qual tem o filho Matias, de dois anos e meio. "Cada um na sua luta. Na saúde lidamos com a morte. Mas quando corre bem, caramba, temos uma recompensa imediata. Na educação, a recompensa tarda a chegar", compara..Fundada na viragem do século, a organização não governamental espanhola Ayuda Intercambio y Desarrollo (AIDA) tem sede em Madrid, oito delegações em Espanha e desenvolve atividades no Líbano, Bangladesh, Marrocos, Senegal e Guiné-Bissau. Presente em Bissau desde 2006 com um programa relacionado com a pesca, o seu papel ganhou cada vez mais relevância ao nível do acesso da população à saúde (cabe à AIDA a gestão dos stocks no Hospital Simão Mendes, por exemplo), mas também à educação (nas aldeias transfronteiriças com o Senegal) ou serviços socioeconómicos (está em curso um programa transversal de desenvolvimento no arquipélago das Bijagós, com fundos da União Europeia)..Segundo dados de 2020, ao longo destes anos foram concluídos dez projetos e outros tantos estão em execução. Em 2014, a delegação da ONG passou a funcionar como Associação AIDA GB. A equipa é formada por 80 pessoas, 76 das quais guineenses. Para ajudar a obter fundos próprios, a AIDA recebe doações de livros e vende-os através de uma rede de 13 livrarias em dez cidades..cesar.avo@dn.pt.O DN viajou a convite do governo da Guiné-Bissau.