Foi a imagem do beijo tórrido partilhado com Burt Lancaster numa praia havaiana que a imortalizou. Ela, esposa adúltera de um comandante, ele, um sargento, os corpos deitados na areia molhada, sujeitos ao embate da maré. O filme, Até à Eternidade (1953), que representou um ponto de viragem na carreira de Deborah Kerr (1921-2007), dá título ao ciclo que a Cinemateca agora lhe dedica. Mas a atriz britânica (cresceu em Inglaterra, embora tenha nascido na Escócia) deixou muito mais ao cinema do que uma cena de franca sugestão erótica. É provando isso mesmo que os nove filmes escolhidos para antecipar o seu centenário - assinala-se a 30 de setembro - não incluem o momento icónico captado por Fred Zinnemann. Há o antes e o depois de From Here to Eternity, entre o Reino Unido e Hollywood..Dona de uma elegância fria, talvez consequência da sua formação em ballet clássico, nas décadas de 1950/60 Kerr trabalhou com alguns dos melhores realizadores da indústria americana, de George Cukor a Vincente Minnelli. Este último, com Chá e Simpatia (1956), provocou a revelação no ecrã de uma perfeita sensibilidade feminina: a mulher que consola romanticamente um jovem avesso à cultura do machismo (Kerr a repetir o seu desempenho da Broadway), numa altura em que a homossexualidade era ainda tema tabu. E foram papéis como esse que atestaram a sua capacidade sui generis de explorar uma linha de tensão entre a beleza física e os jogos de repressão íntima, ou, se quisermos, entre o corpo e a alma. É por isso que títulos como O Espírito e a Carne (1957) lhe assentam tão bem. Neste filme de John Huston em que interpreta uma freira presa numa ilha do Pacífico Sul com um fuzileiro (Robert Mitchum), durante a Segunda Guerra Mundial, está o exemplo dos dilemas da fé que caracterizam algumas das suas personagens. Já Mitchum, mulherengo incorrigível que teve por ela uma paixão platónica, nomeou-a como a sua atriz favorita de todos os tempos..A freira de O Espírito e a Carne não foi, no entanto, uma estreia no uso do hábito. Dez anos antes, no filme inglês que despertou as atenções de Hollywood em Deborah Kerr, Quando os Sinos Dobram (no original, Black Narcissus), ela vestia o traje religioso da irmã Clodagh, uma freira influenciada pela estranha e sensual atmosfera dos Himalaias. Este, a par com A Vida do Coronel Blimp (1943) - ambos fabulosas realizações da dupla The Archers, Michael Powell e Emeric Pressburger -, são as duas grandes obras da fase inicial da sua carreira, em Inglaterra, e vão passar no ciclo da Cinemateca..Black Narcissus seria então a sua estrela da sorte. Nesse ano de 1947 assinou contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer e começou por ser escolhida, quase sempre, para personagens de um certo recato british, um padrão de mulheres respeitáveis que a própria, insatisfeita, designou por "papéis de tiara". Também por essa altura entrou em produções como As Minas de Salomão (1950), Quo Vadis (1951) e Júlio César (1953) - esta uma adaptação da tragédia de Shakespeare onde Kerr interpreta Pórcia, a mulher de Bruto, significando um regresso às suas origens no teatro shakespeariano, aqui pela mão de Joseph L. Mankiewicz e com um tremendo Marlon Brando como Marco António..A tendência para os papéis "de uma certa classe" inverteu-se com o referido Até à Eternidade, que encetou os seus gloriosos anos 1950. A partir daí Kerr teve mais liberdade para se desviar da tipificação da mulher virtuosa, correr o risco dos amantes e assumir personagens psicologicamente mais complexas. Assim, logo depois do mítico beijo com Burt Lancaster, fez O Fim da Aventura (1955), de Edward Dmytryk, adaptado do romance homónimo de Graham Greene, e aí, na pele da mulher casada que tem um caso com um escritor, ela condensa uma série de "ingredientes" que já vinham de trás, juntando uma intensidade ainda pouco desbravada, enquanto mulher que se deixa assaltar, ao mesmo tempo, pela fé e pela dúvida. Um belo filme ambientado em Londres, durante a Segunda Guerra, que é dos títulos mais raros no programa Deborah Kerr - Até à Eternidade. Merece bem a descoberta..Para ver também temos o magnífico Bom dia, Tristeza (1958), de Otto Preminger, baseado no livro de Françoise Sagan, com Kerr na Riviera Francesa a representar a ameaça de uma mudança na vida indisciplinada de uma jovem Jean Seberg; Os Inocentes (1961), de Jack Clayton, brilhante entrada no registo do fantástico, a adaptar um conto de Henry James (Truman Capote colaborou no argumento) em que a atriz surge como percetora de duas crianças numa mansão amaldiçoada; A Noite da Iguana (1964), outro John Huston, a partir da peça de Tennessee Williams, de novo a ensaiar os impasses do espírito e da carne, desta vez em terras mexicanas; e O Compromisso (1969), um dos últimos filmes de Elia Kazan e o derradeiro de Kerr em Hollywood, depois do qual só fez teatro e participou numa mão-cheia de telefilmes e minisséries..Mas falta a joia da coroa: O Grande Amor da Minha Vida (1957). Esse clássico que vai abrir o ciclo na quinta-feira, com o galã Cary Grant a "apagar" da memória Lancaster e Mitchum enquanto protagonista do romance supremo com Deborah Kerr. Este melodrama - história de amor no alto-mar que Leo McCarey levou duas vezes à grande tela - é uma das paragens obrigatórias para se perceber a arte da atriz inglesa no equilíbrio perfeito entre o requinte natural e a turbulência interior. Uma atriz seis vezes nomeada para o Óscar... Não precisou de estatuetas para ser eterna..O Grande Amor da Minha Vida, de Leo McCarey (dia 6, 15h30) Júlio César, de Joseph L. Mankiewicz (dia 11, 15h30|dia 15, 19h00) A Vida do Coronel Blimp, de Michael Powell e Emeric Pressburger (dia 14, 15h30) Quando os Sinos Dobram, de Michael Powell e Emeric Pressburger (dia 19, 19h00) O Fim da Aventura, de Edward Dmytryk (dia 20, 15h30) Bom dia, Tristeza, de Otto Preminger (dia 22, 15h30) A Noite da Iguana, de John Huston (dia 22, 19h00|dia 27, 15h30) O Compromisso, de Elia Kazan (dia 28, 15h30|dia 29, 19h00) Os Inocentes, de Jack Clayton (dia 31, 15h30).dnot@dn.pt