Eis um filme de 2021 que parece ter sido feito no calor da nova ordem mundial. Quando foi oficialmente lançado, há quase um ano, Margrete - Rainha do Norte era "apenas" o retrato de uma mulher no poder. Agora, perante toda a conjuntura da guerra na Ucrânia, não podemos deixar de o ver com outros olhos. Afinal esta é a história da rainha que fundou e governou a União de Kalmar, formada pela Dinamarca, Noruega e Suécia (união que se manteve durante 126 anos, de 1397 a 1523), tendo como principal objetivo a manutenção da paz escandinava. De que forma? Ela quis criar um Exército comum contra a ameaça de uma invasão da Liga Hanseática..A diferença em relação aos dias de hoje é que essa rainha, Margarida I, teria protegido três nações ao prevenir a sua capacidade de defesa ("um Exército tão forte que os germanos não se atrevam a atacar-nos", ouvimo-la dizer), e não em resposta a uma invasão em curso, como sucede no panorama atual..Um filme não se mede pelo seu tema, claro está. E se fosse só o curioso contraponto histórico, Margrete - Rainha do Norte não sobreviveria enquanto objeto de cinema. Assinado pela dinamarquesa Charlotte Sieling, atriz cujo currículo como realizadora passa muito pela televisão (Borgen, Homeland...), este drama que arranca com notas de épico - o vislumbre de um campo de batalha e uma cavalgada - rapidamente assume a configuração de uma peça de câmara, seguindo os esforços de Margarida I, ou Margrete (Trine Dyrholm), para manter a união dos países nórdicos..Estamos em 1402, numa época em que ainda não era comum uma mulher reinar e, por isso, Margrete regia a união através de Erik, o filho adotivo que entra nos seus planos de preservação da paz: ela planeia o casamento dele com a princesa Filipa, a filha de 13 anos do rei inglês Henrique IV, a fim de garantir uma aliança militar com Inglaterra..Mas é justamente em vésperas dessa outra união, matrimonial, que surgem notícias do filho biológico da rainha, Olaf, dado como morto 15 anos antes em circunstâncias mal esclarecidas. Com efeito, há um homem que reclama a identidade de Olaf - a ser verdade, ele é o legítimo rei -, ganhando de imediato o reconhecimento do representante norueguês, enquanto do lado de Erik se posicionam os nobres da Suécia e da Dinamarca, dispostos a manipular o jovem rei..Margrete - Rainha do Norte entra então no registo da pura intriga palaciana, que aqui e ali se arrasta, mas procura manter o seu centro em Dyrholm, a soberana que, debaixo de um estoicismo notável, vai alimentando uma angústia materna em risco de debilitar a sua racionalidade e frieza monárquicas..Este caso verídico do "falso Olaf", como ficou conhecido, é apenas a base para um enredo ficcional que visa alimentar o mistério e suspense, ao mesmo tempo que permite estudar, precisamente, a personagem de Margrete. Ou seja, interessa não só saber se o homem é um impostor (e aqui a história assemelha-se à de O Homem da Máscara de Ferro), mas também se a rainha vai gerir a dúvida com o coração ou com uma postura maquiavélica..Nesse retrato da mulher forte que tanto revela a sua estratégia superior entre os homens, quanto nos faz acreditar que é humana, Trine Dyrholm surge como uma espécie de Helen Mirren dinamarquesa. Se esta última já interpretou monarcas como Isabel I, Isabel II e Catarina, a Grande, a estreia de Dyrholm na pele de Margarida I estabelece uma certa afinidade com aquela atriz britânica: uma questão de confiança, controlo, soberania natural e agitação da carne. Digamos que tanto uma, como outra transmitem liderança simplesmente pelo olhar, ajustando inteligência e sensualidade madura ao ambiente dos jogos de poder..Dyrholm passa assim de Rainha de Copas (2019) a Rainha do Norte, entrando na galeria das grandes atrizes-monarcas, da estirpe de Bette Davis e Judi Dench, que elevaram os retratos históricos com uma presença só ao alcance das mais dotadas para a nobreza com molde humano. Sem ela Margrete teria dificuldades em demarcar-se da produção televisiva de prestígio que por vezes tende a ser, embora Sieling consiga um equilíbrio frágil entre as convenções do retrato de época e a consistência do estudo feminino..Rodado na Chéquia, com paisagens imponentes e interiores meticulosamente iluminados, o filme troca a promessa de épico - que não deixa de ser na sua sugestão visual - pela compassada dinâmica de bastidores, digna de uma divisão em episódios, dada a solenidade dramática de algumas sequências..A verdade é que, entre o bom gosto clássico e a concentração de enredo em aposentos, sente-se falta de algum impulso para além da realíssima Dyrholm. Não há guerras no terreno, nem grandes manobras de sedução, mas há um pirata com moral duvidosa, o favorito da rainha, que assegura uma amostra de ação fora do castelo medieval. O mesmo a quem Margrete tira dos braços uma jovem violada lembrando-o que violar mulheres pode levar à pena de morte por enforcamento, e aconselhando-o, com ironia, a procurar uma que o satisfaça de livre vontade. "Dá muito mais prazer, segundo ouvi dizer"..dnot@dn.pt