A memória mais antiga que Alexandra Azambuja guarda da mãe "está misturada com o sol da década de sessenta coado pelos cortinados cor de laranja, a música de Chico Buarque na rádio - "Estava à toa na vida, O meu amor me chamou, Pra ver a banda passar, Cantando coisas de amor" -" e o anúncio: - Sábado vais começar as aulas de ballet e aprender a fazer plié! "O que é plié?" - perguntou ela. A mãe, Lucínia Azambuja, uma das primeiras mulheres a dirigir um jornal em Portugal (o Região de Leiria, entre os finais das décadas de 1980 e 90) pegou-lhe na mão pequenina e exemplificou, qual bailarina experiente. "E eu a pensar porque haveria de gostar de fazer aquilo..." .Passaram quarenta anos entre esse momento e o último em que estiveram juntas, no verão de 2008. "Nesse final de manhã em que saiu do hospital, comigo na ambulância de mão dada, falámos de como se sentia calma e feliz por voltar ao lugar que era agora a sua casa" - um Lar de idosos, para onde a mãe fora prematuramente, na sequência de um AVC..Quando percorre esse momento, Alexandra, 56 anos, publicitária, olha para ele como "uma memória apaziguada, de alguém que queria mesmo ir-se embora, que teve uma vida extraordinariamente desafiadora e diferente e a quem pude acompanhar até ao último dia. De mão dada"..O mundo em que Alexandra cresceu não é o mesmo em que vive. Deu muitas voltas, trouxe-lhe duas filhas, ensinou-lhe muito sobre relações familiares. O que mudou, afinal, enquanto filha, a partir do momento em que foi mãe? "Fui uma mãe tardia - aos 35 - e muito tardia, aos 44. Enquanto filha tudo mudou, a vida muda toda quando somos mães. Pude perceber como fui uma terrível adolescente e como sou abençoada por ter filhas tranquilas". Matilde, 21 anos, e Laura de 12, cresceram a ouvir falar da avó, que só a mais velha conheceu bem. Pelas palavras da mãe, ouvem as histórias da mulher independente, que viveu a maior parte da vida entre Portugal e o Brasil. Por estes dias, Alexandra tem pelo menos uma certeza na vida: "Pude perceber que tinha herdado um património incalculável: o exemplo de uma pessoa justa"..Alexandra faz questão de lembrar a mãe como era, de verdade: "uma pessoa difícil, exigente, meticulosa, perfeccionista, obcecada com algumas coisas do mundo como a minúcia dos lavores manuais, os horários, o conhecimento profundo sobre aquilo que a interessava e o carácter humano, os porquês das pessoas, que gostava de desmontar como se fossem personagens". À distância do tempo em que foi menina, e mais tarde já mulher, consegue perceber como a mãe era, afinal, "enciclopédica: colecionava conhecimento como uma ferramenta para se relacionar com o mundo. Tinha uma inteligência feroz, uma beleza esquecida de si própria e um sarcasmo sulfúrico. Não suportava burrice, falta de maneiras ou gente chata".Fugida de um ambiente familiar conservador na Lisboa de 1950, com passagem por um Moçambique "salpicado de costumes britânicos - com gin tónico, bridge e bailes de tafetá de seda - aterrou na provinciana Leiria de 60 onde sufocava - poucos interlocutores, uma burguesia tristonha, um país injusto e pobre de horizontes". Haveria de passar essa imagem e esse relato aos dois filhos (Alexandra é a mais nova). "Penso que tinha o gene da indignação - que a tornou uma mulher de esquerda antes do 25 de Abril - porque me relatava muitas vezes o brutal impacto de ter visto negros açoitados pelo roubo de uma pilha, ou com grilhetas nos pés, lá nas colónias Salazaristas onde Portugal marcava passo enquanto o mundo civilizado progredia"..Alexandra acredita que a mãe era de esquerda "por convicção e iluminação": tinha um gato chamado Che na década de 70, era simpatizante do MES, enquanto trabalhava com Magalhães Mota, um dos fundadores do PSD. "Contava-me a rir os telefonemas em que se discutia o nome do partido laranja por nascer..."..A doença da mãe, que a impediu de ser avó.Matilde e Laura ouvem as histórias da avó Lucínia desde sempre. Alexandra guarda da mãe muitos objetos com que decora sempre as casas onde já viveu. Recorda-a por vezes sem conseguir apagar "uma enorme mágoa pelo facto da doença da não lhe ter permitido acompanhar as netas". " Trago a memória dela colada às pequenas grandes coisas do quotidiano - sejam hábitos que tentamos perpetuar, como estar do lado justo da vida, ou levar livros e jornais aos reclusos, ou simplesmente mostrar fotografias antigas, ou ainda visitar locais da nossa história familiar - como o local onde a avó dirigiu o semanário Região de Leiria, o jornal que permaneceu 3 gerações na família"..Em datas festivas, marca a presença dela com pequenos cartões, onde escreve "A avó da Matilde bordou a toalha", por acreditar que "convocar a memória dos que já partiram é cumprir a sua eternidade"..Dos anos 1960 para 2020, que mãe é esta, para lá da filha que guarda a mãe em memórias e histórias? "Sou a mãe híper-preocupada de uma família monoparental com duas filhas, ao contrário da minha Mãe que teve uma vida demasiado preenchida para poder ser mãe galinha". Mas feitas as contas, considera que ambas educaram de forma parecida: muito mais importante que o que vestimos ou o que temos, é a forma como defendemos o que nos parece justo. A verdadeira (e única) profissão de fé".