Dados enviados à Rússia. Câmara de Lisboa multada em 1,2 milhões de euros

A Comissão Nacional de Proteção de Dados multou a CML no âmbito do caso dos dados de ativistas que foram enviados pela autarquia às autoridades russas. Atual executivo fala em herança pesada que condiciona medidas previstas no orçamento apresentado.
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A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) multou a Câmara Municipal de Lisboa em 1,2 milhões de euros, no âmbito do caso que ficou conhecido por Russiagate, um processo relativo ao tratamento de dados pessoais de participantes em manifestações.

De acordo com a CNPD, o valor total da multa "corresponde ao conjunto de 225 coimas parcelares por violação de várias disposições" do Regimento Geral sobre a Proteção de Dados, nomeadamente "falta de licitude, violação dos princípios da minimização e da conservação dos dados e incumprimento das obrigações de transparência".

No parecer, a CNPD sustenta que a penalização de um milhão e 250 mil euros leva em conta o pedido da autarquia, que requereu a dispensa de aplicação de coima invocando a situação financeira provocada pela pandemia, caso contrário "a gravidade das coimas aplicadas seria seguramente bastante mais elevada". "O grau de censurabilidade das condutas e os riscos para os titulares dos dados justificariam um nível de sanção muito mais elevado", diz a mesma entidade.

Nas 100 páginas em que justifica a coima a comissão tece duras críticas à atuação da Câmara de Lisboa - sob a gestão de Fernando Medina e, antes, de António Costa - apontando uma "evidente desorganização dos serviços", um "defeito que o próprio município assumiu" ainda em 2013, mas "sem cuidar de o corrigir devidamente". "Torna-se difícil, quando não mesmo impossível, ignorar uma coerência no desrespeito pelas normas de proteção dos dados pessoais e uma postura de laxismo", acrescenta a CNPD, que considera que o município agiu com dolo, dado que conhecia as suas obrigações legais, mas "optou por transferir os avisos para entidades não contempladas na lei, apenas com o intuito de assegurar a sua desresponsabilização".

Em julho de 2021, recorde-se, a CNPD acusou o município de Lisboa de ter violado o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) relativamente a avisos de manifestações realizadas desde julho de 2018. "Ao comunicar os dados pessoais dos promotores de manifestações a entidades terceiras", como embaixadas, a autarquia da capital foi acusada de "ter violado o RGPD". E anunciou, já nessa altura, a identificação de 225 contraordenações nas comunicações feitas pelo município no âmbito de manifestações, comícios ou desfiles.

O processo foi aberto devido a uma participação - que deu entrada na CNPD em 19 de março de 2021 - relativa à comunicação à embaixada da Rússia em Portugal e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros russo de dados pessoais dos promotores de uma manifestação realizada junto à embaixada.

Segundo o projeto de deliberação da CNPD, então conhecido, 111 contraordenações dizem respeito à comunicação de dados a terceiros e 111 são relativas à difusão de informações para serviços e gabinetes municipais, existindo ainda uma comunicação que viola o "direito de informação", outra que põe em causa o princípio da limitação da conservação de dados e, por fim, uma contraordenação por ausência da avaliação de impacto sobre a proteção de dados.

A coima relativa à contraordenação pela ausência da avaliação do impacto sobre a proteção de dados poderia atingir 10 milhões de euros, enquanto as restantes 224 poderiam ir, cada uma, até aos 20 milhões de euros.

A atual liderança da Câmara de Lisboa disse esta sexta-feira que a multa da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) "é uma herança pesada" e que condiciona medidas previstas no orçamento apresentado.

"Esta decisão é uma herança pesada que a anterior liderança da Câmara Municipal de Lisboa [sob a presidência do socialista Fernando Medina] deixa aos lisboetas e que coloca em causa opções e apoios sociais previstos no orçamento agora apresentado", lê-se numa reação escrita enviada à Lusa pela Câmara Municipal de Lisboa, atualmente liderada pelo social-democrata Carlos Moedas.

Em causa está a decisão da CNPD de multar a Câmara de Lisboa em 1,2 milhões de euros no processo relativo ao tratamento de dados pessoais de participantes em manifestações, confirmada esta sexta-feira à Lusa por fonte oficial do município.

"Vamos avaliar em pormenor esta multa e qual a melhor forma de protegermos os interesses dos munícipes e da instituição", indicou a Câmara de Lisboa, liderada pelo social-democrata, que governa sem maioria absoluta. A Câmara de Lisboa pode agora recorrer para os tribunais da decisão da CNPD ou optar por pagar a coima no prazo de dez dias

No início de junho do ano passado foi tornado público que a autarquia fez chegar às autoridades russas os nomes, moradas e contactos de três ativistas russos que organizaram em janeiro um protesto, em frente à embaixada russa em Lisboa, pela libertação de Alexey Navalny, opositor do Governo russo.

Quando o caso foi noticiado, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, na altura Fernando Medina (PS), pediu "desculpas públicas" pela partilha desses dados, assumindo que foi "um erro lamentável que não podia ter acontecido", tendo originado uma série de protestos, desde a Amnistia Internacional aos partidos políticos.

A 18 de junho, na apresentação de uma auditoria interna realizada ao caso de divulgação de dados de manifestantes a embaixadas, Fernando Medina reconheceu que a autarquia desrespeitou reiteradamente um despacho de 2013 assinado por António Costa, presidente do município à data e atual primeiro-ministro.

As conclusões desta auditoria interna indicaram que a Câmara de Lisboa enviou dados pessoais de organizadores de manifestações em 52 protestos junto a embaixadas depois da entrada em vigor da nova lei de proteção de dados,

Na sequência deste caso, procedeu-se à exoneração do encarregado de proteção de dados do município e coordenador da equipa de projeto de proteção de dados pessoais, Luís Feliciano.

O ex-vice-presidente da Câmara de Lisboa João Paulo Saraiva (PS) disse esta sexta-feira que os fundamentos da multa da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) "são completamente atacáveis" e considerou "uma vergonha" a reação da atual liderança do município.

"Vamos admitir, por absurdo, que essa seria a coima final - 1,2 milhões de euros. Significa 0,1% do orçamento da câmara [proposta de 1,16 mil milhões de euros para 2022]", afirmou o socialista João Paulo Saraiva, rejeitando as palavras da atual liderança da Câmara de Lisboa, sob a presidência de Carlos Moedas (PSD), de que a multa da CNPD "coloca em causa opções e apoios sociais previstos no orçamento agora apresentado".

"Acho que devia haver decoro por parte do presidente da câmara Carlos Moedas e da sua equipa quando se fazem afirmações deste género, porque a única palavra que me surge, assim à primeira, é [que é] uma vergonha dizer uma coisa deste género, é um absurdo", declarou o ex-vice-presidente da Câmara de Lisboa (no anterior executivo, presidido pelo socialista Fernando Medina) e atual vereador da oposição, sem pelouro atribuído.

Em declarações à agência Lusa, João Paulo Saraiva recusou ainda a ideia de que a multa da CNPD "é uma pesada herança" do anterior executivo, considerando que tal afirmação por parte da atual liderança municipal é uma "falta de decoro total, político e pessoal". Quando o PS assumiu a liderança do município após a governação do PSD, acrescentou, "recebeu mil milhões de euros de dívidas e 500 milhões de euros de dívidas a fornecedores".

Para o autarca socialista, a autarquia deve recorrer da decisão da CNPD e "o PS apoiará todas as iniciativas de recursos sobre esta matéria".

Para João Paulo Saraiva, as questões apresentadas pela CNPD "são completamente atacáveis", nomeadamente a atribuição de ação dolosa a todos aqueles que participaram nos processos decisão sobre esta matéria, o que "não tem qualquer sustentabilidade jurídica", e a transmissão da informação sobre quem são os promotores das manifestações à Polícia de Segurança Pública (PSP): "Num conjunto apreciável das 225 infrações que são referidas no relatório, cerca de 111 têm envio a entidades terceiras, nomeadamente a PSP".

O ex-vice-presidente destacou também o histórico da CNPD, sublinhando que "1,2 milhões de euros não é a maior coima" - as mais elevadas foram aplicadas ao Hospital do Barreiro (a comissão propôs cinco milhões de euros e acabou por não cobrar nada) e à operadora de telecomunicação Optimus, em que a multa inicial era de cerca de quatro milhões de euros e acabou por ser aplicada no valor de 100 mil euros.

"Se não fosse por outro motivo, que há muitos outros e melhores do que este, este seria um bom motivo por si só para recorrer", apontou.

O socialista considerou que o valor da coima à autarquia "não tem expressão" comparado com os montantes divulgados inicialmente. No seu entender, "a CNPD alimentou e deixou que fosse alimentado que seriam centenas de milhões de euros", antes do trabalho de auditoria interna que a câmara fez e da defesa que apresentou à comissão.

"Estou só a relativizar o facto de na altura se ter falado que, para além da questão reputacional do município, havia a questão financeira em centenas de milhões de euros", expôs, recusando a ideia de desvalorização e desresponsabilização da situação, que "é grave".

Sobre o que poderá ser a coima final após a câmara recorrer, João Paulo Saraiva defendeu que "será um valor completamente insignificante relativamente àquilo que foram os valores iniciais e mesmo relativamente ao valor que está agora em cima da mesa".

A Lusa tentou contactar, sem sucesso, o anterior presidente Fernando Medina.

Com Lusa

Notícia atualizada às 17:45 e às 19.45.

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