Cuidados Intensivos. 700 médicos e enfermeiros portugueses fazem formação da UE

A Sociedade Europeia de Cuidados Intensivos está a dar formação básica de cuidados intensivos a médicos e enfermeiros de outras especialidades a pedido da própria União Europeia. O programa, que envolve os 27 Estados membros e o Reino Unido, começou no início de novembro e está agora a terminar. Em Portugal, aderiram 34 hospitais, com 359 médicos e 398 enfermeiros. Mas, ao todo, o programa conta com 2700 formadores e 11 747 formandos. O objetivo é aumentar o número de pessoas que possam apoiar as equipas de cuidados intensivos.
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O som dos ventiladores nas unidades de cuidados intensivos (UCI) nos hospitais do norte de Itália jamais se apagará da memória de alguns. As imagens de unidades cheias e de profissionais exaustos, e com desabafos sobre a falta de recursos, que não permitiam salvar todos os doentes, correram mundo. As imagens eram o espelho do impacto da primeira fase da pandemia, numa região até aí considerada pioneira e das melhores no mundo em medicina intensiva, e chocaram as sociedades e assustaram os próprios profissionais. Se a Itália estava neste limite, o que iria acontecer aos outros países?

Foi por isto que a UE se entregou ao confinamento, para que os sistemas de saúde não entrassem em rutura. Mas tal não evitou que a discussão sobre a capacidade de cuidados em medicina intensiva se estendesse a todos os Estados membros da União Europeia, e Portugal - onde esta quinta-feira (10 de dezembro) estavam internadas 3304 pessoas devido à covid-19, sendo que 509 estavam em unidades de cuidados intensivos - não foi exceção. Com esta ficou a saber-se que o país ocupava os últimos lugares em termos de investimento e de capacidade neste tipo de cuidado, com 4,9 camas por cem mil habitantes. A Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos alertou para o facto, pediu que se chegasse às 6,4 camas, mas o Governo prometeu 9,4 camas por cem mil habitantes e mais ventiladores, chegou a comprar 500 à China. Muitas foram as vozes de intensivistas que ao longo do tempo foram explicando que nada disto adiantava se não houvesse mais recursos humanos. São estes que fazem parar as Unidades de Cuidados Intensivos e toda a atividade programada, sobretudo a cirúrgica.

A questão é que as imagens divulgadas em março pelos próprios profissionais italianos parecem ter assustado também a União Europeia, que, no final da primeira vaga, solicitou à Sociedade Europeia de Cuidados Intensivos (ESICM, na sigla inglesa) um programa de formação básica nesta área para médicos e enfermeiros de outras especialidades afins. A formação começou a decorrer em todos os países da UE e no Reino Unido, que também quis aderir ao programa, no início de novembro; nalguns já terminou, em Portugal está agora a terminar.

DestaquedestaqueNa Europa, 12 mil médicos e enfermeiros aderiram ao programa de formação promovido pela UE. O objetivo é adquirirem conhecimentos básicos para poderem apoiar equipas de UCI.

Ao todo, o programa envolve 2700 formadores e 11 747 formandos, 6056 enfermeiros e 5691 médicos, de toda a Europa, entre médicos e enfermeiros.

Em Portugal, foram 34 os hospitais que aderiram ao programa, com 359 médicos e 398 enfermeiros de várias especialidades. "Estes médicos e enfermeiros não ficam com competências para exercerem sozinhos, de todo. Esta formação não lhes dá a especialidade, mas ficam com uma formação básica que lhes permite integrar de imediato uma equipa e apoiar os cuidados nesta área", explicou ao DN o médico intensivista Pedro Póvoa, coordenador do Departamento de Infecciologia da ESCIM e coordenador do programa em Portugal.

Ou seja, Portugal em breve poderá contar com mais 756 profissionais com formação básica em cuidados intensivos que em caso de necessidade poderão apoiar estas equipas. Uma situação que faz Pedro Póvoa dizer que "o programa teve bastante recetividade por parte dos hospitais e por parte dos profissionais, já que se trata de uma formação voluntária".

A ideia para este programa de formação nasceu um pouco ao contrário, argumenta o médico. "Não foi a Sociedade Europeia de Cuidados Intensivos que se candidatou a fundos da UE para avançar com um programa de formação, foi a própria UE que veio ter com a sociedade para que avançasse com esta formação básica dividida por várias etapas, desde o ensino presencial ao ensino online, e por realidade virtual. O total da formação resultou em mais ao menos 24 horas, que não foram feitas todas ao mesmo tempo em todos os países. Por exemplo, no meu hospital [São Francisco Xavier], a última formação presencial só vai ser feita daqui a dez dias, noutros já terminou."

Pedro Póvoa recorda que no início da pandemia muitos hospitais avançaram com formações, embora não tão completas como esta, para médicos e enfermeiros de outras especialidades.

O hospital onde trabalha foi um deles. "Procurámos dar formação sobre como lidar com a situação e como abordar o doente com covid e UCI. Fizemos guias de utilização de alguns fármacos mais comuns para o doente ventilado, uma espécie de folheto de bolso para os profissionais poderem ter uma ideia rápida de como fazer. Por exemplo, como virar o doente de barriga para baixo, como fazer aspiração de secreções. As formações eram ao domingo e tiveram uma adesão muito boa por parte dos nossos profissionais, que ficaram com técnicas básicas para lidar com um doente em cuidados intensivos."

Para o coordenador do Departamento de Infecciologia da ESICM, também um dos 1400 formadores neste programa, "a formação que está a ser dada tem a vantagem de não assentar em grandes discussões de ciência, mas em guias clínicos".

Ou seja, explica, "o que faz a diferença em cuidados intensivos não é só o melhor medicamento do mundo, porque se tivermos este medicamento para dar ao doente e não tivermos uma boa qualidade de terapêutica de suporte, o medicamento não faz efeito. Basta ver a mortalidade que existe em UCI de países europeus e em países como o Brasil ou o México".

O intensivista reforça que a formação promovida pela UE "é um refresh de técnicas básicas, mas mais completa, porque envolveu conhecimentos em medicina intensiva, não só na área da ventilação, mas também na área da infecciologia, da antibioticoterapia, analgesia e de uma série de outros aspetos".

Aliás, um dos critérios para a formação era o profissional ter já uma especialidade afim da medicina intensiva, por isso os que mais a procuraram foram médicos de medicina interna, de pneumologia, nefrologia, anestesiologia e cirurgia. Em tom de balanço, diz mesmo que "o programa levado a cabo pela Europa é muito positivo, pois, numa situação de necessidade, os profissionais que terminaram a formação podem apoiar as unidades com o seu trabalho".

O Centro Hospitalar do Médio Tejo foi das unidades que aderiram à formação promovida pela União Europeia e dada pela ESICM. Nos primeiros dias de dezembro, 28 médicos e 30 enfermeiros terminaram a formação. Para o diretor do Serviço de Urgências e de Medicina Intensiva, Nuno Catorze, também um dos formadores neste programa, a adesão foi excelente já que "é voluntária e tem de ser feita fora das horas hospitalares, já que, neste momento, e com grande pena nossa, o hospital não pode dispensar ninguém".

Na última semana, todos os formandos e formadores estiveram durante três dias no anfiteatro do Hospital de Torres Novas, uma das unidades que integram o Centro do Médio Tejo, para fazerem a parte final da formação, que foi em realidade virtual.

"A formação tem a componente formativa presencial, que não pode ser num sítio qualquer, e a componente online. Os médicos e enfermeiros que aderiram ao programa têm de descarregar uma plataforma, que é da ESICM, com o conteúdo formativo, de 16 horas, que tem de ser feito num mês", explica o intensivista que há uma década foi criar a UCI do Hospital de Abrantes.

"Na formação online, os formandos puderam trabalhar vários temas em cuidados intensivos, desde a falência de órgãos a temas mais relacionados com as infeções víricas, neste caso com a covid-19, ou da gestão de equipas à comunicação. Depois, a formação presencial teve uma especificidade, que foi a de uma parte ser dada em realidade virtual, com óculos fornecidos pela UE. Os formandos conseguem, não em 3D mas em 2D, navegar como se estivessem nas unidades", refere.

Mas esta particularidade impunha também uma outra condição, que fosse dada num local com "wi-fi com capacidade para o descarregamento destes dados, razão pela qual no Médio Tejo a unidade escolhida para este módulo foi a de Torres Novas. Durante três dias, os 58 formandos passaram por aquele espaço divididos de forma a acautelar o distanciamento físico. No final da formação, há um teste, "é-lhes dada uma password para fazerem o teste, que lhes dá oito créditos formativos".

DestaquedestaqueNo Centro Hospitalar do Médio Tejo, 28 médicos e 30 enfermeiros, com uma média de idade de 32 anos, aderiram ao programa da UE.

Na sexta-feira, todos fizerem o teste, as notas finais, se passaram ou não, ainda não sabem, mas para Nuno Catorze "esta formação já foi positiva e muito inovadora. Desde a formação online, através palestras com peritos europeus, com grandes capacidades pedagógicas e simplicidade nas apresentações, que se revelaram autênticas aulas muito práticas, baseadas na fisiologia e no ato da ventilação ou da abordagem ao doente com covid".

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