Quando vai ao Starbucks beber o café e lhe perguntam o nome para escrever no copo, ela é Eva. Quando envia um e-mail para um amigo, o e-mail é da Eva. No Facebook é Eva. Quando chama a Uber, o motorista olha para o nome no telefone e interroga perante a mulher parada na rua à espera do transporte: É a Eva? Ela responde que sim. É a Eva. Ainda que nós a conheçamos como Cristina Branco, a cantora.."A Eva nasceu há mais ou menos 13 anos e não é uma personagem, é um alter ego, uma outra eu", explica. Nasceu num momento de rutura. "Normalmente, os momentos de rutura são aqueles em que é importante parar e repensar uma série de coisas, equacionar. Foi o que aconteceu em 2006. Então, eu perguntei a um amigo, que é diretor do Museu de Arte Moderna do Luisiana, perto de Copenhaga, na Dinamarca, se podia ir uns dias para lá, para uma casa que eles têm onde fazem residências artísticas. É um sítio maravilhoso, com um lago enorme e do outro lado está a Suécia. Fui para lá sozinha para fazer um reset. E comecei a escrever. Foi assim que surgiu a Eva, nessa conversa comigo, quase como uma forma de criar premissas para a Cristina que eu deveria ser. Aqueles compromissos que fazes contigo. Tenho de mudar isto, há coisas que não podem voltar a acontecer, esse tipo de coisas."."Quando tens essa possibilidade de explorar tudo o que está dentro de ti, perguntas: o que é para mim a liberdade? Essa foi a pergunta que fiz e foi a partir dela que nasceu a Eva, que é uma mulher completamente livre", diz Cristina Branco. Sem qualquer tipo de compromisso ou de constrangimento económico, social, familiar, o que fosse, a Eva poderia ser o que quisesse. Cristina Branco imaginou toda a sua biografia, os pais, a profissão, o tipo de roupa que ela usava. "Aquilo começou quase a ganhar vida. Era uma pessoa com a qual eu me estava a identificar de uma forma muito intensa. Estávamos as duas sozinhas. Ela fez-me companhia.".No final desse retiro, Eva Houssman era uma pessoa completa. "É fotógrafa, ela captura a alma e a beleza do corpo humano. Ela nasceu no dia 2 de março de 2006 na Dinamarca, território de Luisiana, o Museu de Arte Moderna. Nasceu aos 34 anos. Às vezes nasce-se assim, numa folha em branco, por uma mente intrincada e uma mão trémula", escreve Cristina Branco no texto de apresentação do seu novo disco, que se chama precisamente Eva e que é baseado nesse alter ego.."Construí-a à minha imagem e tentei consertar todas as minhas dúvidas e medos, como um artista que cria o seu próprio universo moral sem nenhum arrependimento ou culpa. Eva é um espírito livre em permanente evolução", acrescenta Cristina Branco..Eva existe desde então na cabeça da cantora e na sua vida digital. "Em tudo o que posso não ser a Cristina Branco sou a Eva Houssman", diz. Mas nunca a tinha usado na música. Até agora. Em 2018, por causa do divórcio, voltou a passar por um desses momentos de rutura, daqueles em que é preciso parara para pensar. "Então, decidi tirar a Eva da gaveta.".Um disco autobiográfico.Mostrar Eva é também mostrar-se a ela própria. "Este disco é completamente autobiográfico. Para mim é tão óbvio. Está tudo lá", diz Cristina Branco. "É a minha história. Socialmente acho que é o momento de as pessoas dizerem exatamente aquilo que são e não terem medo de dizer se não se sentem bem. Quando tu não te sentes bem psicologicamente, mentalmente, isso é algo que não deves esconder, muito menos se tens a possibilidade de ter uma voz pública.".Para pôr a Eva em disco, Cristina Branco mostrou este alter ego a alguns autores com quem tinha já afinidades: André Henriques (dos Linda Martini), Pedro da Silva Martins e Luís Martins, Filipe Sambado, Francisca Cortesão e Márcia. "São amigos, pessoas que me conhecem bem. Mostrei-lhes a Eva, contei-lhes tudo sobre ela, que só veste roupa vintage, fuma boquilha e só daquelas que compra em leilões de cantoras negras norte-americanas, esses detalhes todos. E também lhes enviei excertos do meu diário desde janeiro de 2018 até janeiro de 2019, que é a parte mais densa." Foi com base neste material que os autores fizeram as canções. "E eles entenderam o que eu queria transmitir com este disco. Alguns dos textos até têm frases minhas.".Mais do que isso: pela primeira vez, Cristina Branco canta uma canção com letra sua (e com música de Bernardo Couto, que também se estreia na composição). Chama-se Contas de Multiplicar. "Para mim, escrever é uma forma de ultrapassar os problemas, assim como cantar. Escrevo muito, todos os dias. Tenho um diário, mas já deixou de ser no papel, é tudo no telemóvel, mas tenho imensos cadernos cheios de coisas, estou sempre a escrever. Mas, curiosamente, nunca escrevi canções, acho que não tenho jeito para escrever canções, eu sou da prosa." Ao princípio, a cantora estava um pouco insegura em relação a esta "prosa poética", mas acabou por ultrapassar isso..A música como forma de terapia.Por tudo isto, Cristina Branco admite que este é o seu disco mais pessoal. "A vida não se passa toda no Instagram, não é toda cor-de-rosa. A vida das pessoas é cheia de altos e baixos, com coisas maravilhosas e lixo também, é como é. Acho que é importante plasmar a minha verdade naquilo que eu faço, a música é o sítio onde sou mais autêntica, é o sítio onde faço a minha catarse. A música salva-me todos os dias. E é muito mais barato do que ir ao psiquiatra", ri-se..O disco, com dez temas (escolhidos entre 23 possíveis), é de Cristina Branco mas não é só dela. A produção é assinada por ela com os seus três cúmplices dos últimos anos: Bernardo Couto (guitarra portuguesa), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Luís Figueiredo (piano). Este é o terceiro disco que fazem juntos, depois de Menina (2016)e Branco (2018). "Somos como uma família. Há uma empatia enorme. Nós criamos juntos, gravamos juntos, andamos em digressão juntos, lavamos a roupa juntos. Eles são uma parte da Eva, uma parte de mim, e eu não concebo a minha música sem aquela sonoridade.".Para fazer Eva, os quatro músicos (e Joana Linda, responsável pelos vídeos e por toda a imagem do disco) fizeram uma primeira residência artística em Loulé e depois na Dinamarca (no local onde Eva nasceu) e, por fim, entraram em estúdio. "Estivemos praticamente um mês e meio fechados sobre a nossa música, muito focados. Isso fez toda a diferença.".Tudo o que se ouve no disco - sejam sinos, pandeiretas ou coros - foi criado por eles e foi gravado num take conjunto. "Se houvesse erros, tínhamos de repetir todos. Temos tal confiança uns nos outros que queríamos que as pessoas nos ouvissem como nós somos, é a nossa verdade, não tem nada de laboratório. Aquilo somos nós no palco. Os concertos vão ter aquele som.".Os concertos (se não houver cancelamentos) começam na Holanda. Loulé recebe Eva a 19 de junho. Em Lisboa, está agendado um concerto no Teatro Tivoli a 8 de outubro. E ainda que os discos de Cristina Branco há muito não tenham fado, ao vivo ela faz sempre questão de interpretar um ou outro. "Não ouço muito fado, mas canto muito fado. Faz parte de mim e gosto muito de cantar fado. Eu sou completamente ateia, mas à medida que o tempo passa o fado para mim ganhou uma dimensão quase religiosa, gosto profundamente de fado e cada vez mais."