Crimes de ódio: mais de metade das vítimas não faz queixa

Hoje é o Dia Europeu da Vítima de Crime. Barómetro da APAV sobre crimes de ódio e violência discriminatória mostra que em Portugal se discrimina mais pela cor de pele e etnia, a orientação sexual e a identidade de género.
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Os portugueses conhecem ou já ouviram falar de discriminação e de crimes de ódio, sabem que estes podem passar por insultos ou agressões relacionados com a cor da pele, a nacionalidade e a orientação sexual, por exemplo, e que vão além do preconceito. Entre os que assumiram terem sido vítimas e que foram ouvidos para um barómetro da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), mais de metade admitiu não ter feito queixa às autoridades competentes.

"Porque não deram importância à situação", mas também porque "não acreditam que valesse a pena", ou porque "tiveram receio de represálias" ou ainda porque não sabiam que podiam denunciar e onde.

O inquérito, o primeiro a abordar os crimes de ódio e a violência discriminatória, foi realizado com uma amostra de 810 pessoas, em janeiro de 2019.

Os resultados não surpreenderam a equipa da APAV que desde 2005 se dedica ao tema através da Rede de Apoio a Vítimas Migrantes e de Discriminação. "Talvez a grande surpresa tenha sido a percentagem alta [97%] de pessoas que disseram conhecer ou já terem ouvido falar dos conceitos de discriminação, crime de ódio ou violência discriminatória", disse Joana Menezes, responsável da rede, ao DN.

O que já tinham constatado no terreno e que os resultados melhor mostraram foi também o facto de as pessoas não saberem que existe "uma divisão entre o que é considerado contra ordenação e crime".

Na prática, há quem faça queixa na PSP de práticas discriminatórias que não constituem um crime, como a recusa de contratação [num emprego] por motivo discriminatório, uma queixa que deve ser feita, no caso, à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

"Há falta de informação - as pessoas não sabem onde se podem dirigir para apresentarem as queixas e há uma dispersão muito grande no que diz respeito a questões de discriminação", diz a responsável da APAV, que sugere "um único local onde as pessoas possam denunciar práticas discriminatórias". Depois, estas poderiam ser distribuídas pelas autoridades competentes.

Racismo e orientação sexual estão no topo das queixas

Com base nos resultados deste estudo, as pessoas queixam-se, na sua maioria, de que foram discriminadas em relação a questões relacionadas com a etnia ou a cor da pele. "São casos de racismo, sim", admite Joana Menezes. Logo a seguir surgem as questões relacionadas com a orientação sexual e a identidade de género.

"Aquilo que nos chega [à Rede de Apoio a Vítimas Migrantes e de Discriminação] são frequentemente situações em que as pessoas são vítimas de discriminação com base na etnia, na cor da pele. Quando alguém identificou um sotaque e já não vai mostrar uma casa [para arrendar]. São estas questões relacionadas com a nacionalidade e logo a seguir com a orientação sexual", confirma a responsável.

Os crimes de ódio ou de violência discriminatória traduzem-se em insultos, agressões verbais ou agressões físicas, que acontecem na rua, mas também em casa e no local de trabalho.

Já os atos de discriminação acontecem sobretudo no "impedimento ou limitação ao acesso e exercício normal de uma atividade económica" - são os casos de pessoas que não são selecionadas para uma vaga de emprego devido a questões raciais e étnicas, mas também a recusa ao acesso a locais públicos ou abertos ao público.

Nada de novo para as técnicas da APAV. "Estes resultados correspondem aquilo que percebemos no contacto com as vítimas", diz Joana Menezes.

"Existem práticas discriminatórias, que não são tão pouco frequentes como isso, e embora as pessoas saibam que são práticas discriminatórias ou crimes de ódio, não têm informação sobre os locais onde podem apresentar queixa, não têm informação sobre os seus direitos, consideram que não vale a pena, porque acham que não vai acontecer nada, resume.

"Dizer 'vai para a tua terra' não é considerado crime"

"É urgente alterar as leis: há muitas situações que ainda não são consideradas crime, sobretudo as que mais acontecem - as agressões verbais, as ameaças e a destruição da propriedade. O código penal português não reflete esta realidade", aponta Joana Menezes. E pede: "Têm de existir alterações legislativas concretas".

Há exemplos. "Se alguém escrever vai para a tua terra na parede de uma casa, em termos legais vale o mesmo se em vez disso desenhar um coração - aos olhos da lei será só um crime de dano; o motivo discriminatório cai por terra", realça.

A verdade é que o crime de injúria não prevê um agravamento se for causado por motivo discriminatório e será tratado como qualquer tipo de injúria. "Como é um crime particular - e não público - a vítima tem de constituir advogado, pagar custas do tribunal, então a pessoa desmoraliza e não avança com a queixa", lamenta Joana Menezes.

Também não há um registo de queixas por parte das forças policiais sobre os crimes que têm por base o motivo discriminatório. Segundo a APAV, não há estatísticas, as queixas não são assinaladas como ligadas a práticas discriminatórias.

"Existe um agravamento nos crimes de ofensa à integridade física e homicídio, mas aqueles crimes que são os que mais acontecem não têm uma especificação". A técnica da APAV avança que podia acontecer uma "automatização do crime para abarcar todas essas práticas [discriminatórias] e assim aplicar uma moldura penal adequada".

Os resultados do barómetro da APAV/Intercampus são apresentados esta sexta-feira de manhã, Dia Europeu da Vítima de Crime, no seminário-debate sobre crimes de ódio, que tem lugar na sede da APAV, em Lisboa.

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