Covid-19: uma pandemia na era digital
Independentemente do que venha a acontecer, 2020 ficará na história como o ano em que foi decretada uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde, a primeira pandemia da era digital. Três meses separam os últimos dias de 2019 e o dia em que escrevo, 13 de março. Foi neste período que o mundo descobriu a existência do SARS-CoV2 e da doença que ele provoca, a COVID19. Depois de 137.882 casos e 5.080 mortes em todo o mundo (13/03, 11h30), é possível perceber que o pior ainda está para vir, e que haverá alterações profundas na saúde, na economia, nos hábitos e na política.
Primeiro, o vírus. Não seremos capazes de eliminar o SARS-CoV2. Esta é uma mensagem essencial para compreender o que se passa. Sendo um vírus novo, a informação que existe é pouca, mas sabemos o suficiente para perceber que é bastante contagioso, bastante resistente em secreções e superfícies, e bastante letal (10 a 20 vezes mais que a normal "gripe", valor preliminar).
Se cerca de 80% das pessoas passam quase incólumes pela crise, os outros 20% estarão pior. Desses, um quarto precisará de cuidados hospitalares intensivos. É aí que o verdadeiro problema se coloca: a saturação dos serviços de saúde transforma letalidades - mortes entre os infetados - que rondam os 0,5% (Coreia do Sul) em valores dez vezes superiores (Itália). Para salvar as pessoas e as sociedades, é crucial impedir a saturação dos sistemas de saúde.
O digital veio revolucionar a forma como tudo aconteceu. Foi o digital que ajudou a lançar o alerta, na China. Foi através do digital que fomos acompanhando, ao minuto, os acontecimentos. É verdade que nasceu um admirável mundo novo de lunáticos e teorias da conspiração, mas também se conseguiram coisas fascinantes, sobretudo entre a comunidade académica: partilha em tempo real da localização de casos e da sequenciação genómica dos vírus encontrados, modelação matemática da evolução dos casos para várias regiões, partilha de melhores práticas e estudos clínicos multicêntricos à escala planetária.
Se o primeiro país a acolher a pandemia foi a China, foi também a China o primeiro caso de sucesso - provisório, claro. Para além da China, podemo-nos guiar pelos bons exemplos da Coreia do Sul, Singapura, Taiwan, ainda que nem sempre medidas a tomar em democracias liberais; e pelos maus exemplos da Itália e da Espanha. Para evitar a saturação dos sistemas de saúde, é preciso atrasar o avanço da doença pela população. Para isso, são necessárias políticas, mas também modificações nos comportamentos individuais - e dificilmente se passa sem as duas coisas.
As políticas servem para reforçar o sistema de saúde e reduzir todos os contactos sociais evitáveis/não essenciais em tempos de crise, encerrando escolas, museus, livrarias e espaços de recreação, proibindo eventos e outros ajuntamentos populacionais, incentivando o teletrabalho, e limitando a frequência de espaços essenciais, como mercearias ou farmácias. Tudo isto deve ser ponderado tendo em conta o impacto económico e social que isto causa. As políticas servem também para apoiar a economia, vítima, em estado grave, de tudo isto. Mas o comportamento individual é vital: higiene pessoal, isolamento social, respeito pelas recomendações das autoridades e interação responsável com o sistema de saúde.
Mais uma vez, o digital tem marcado muitas das soluções de contenção e mitigação da pandemia. São exemplos o mapeamento dos casos e as apps para verificação de cumprimento das quarentenas. Têm sido os estados com menos preocupações com a liberdade aqueles que mais tiram proveito das ferramentas tecnológicas, mas não precisa de ser necessariamente assim, e será interessante acompanhar as soluções de Estados inovadores mas respeitadores das liberdades e privacidade. A ciência tem usado também a inteligência artificial para testar velhos fármacos e vacinas e acelerar a produção de novas soluções.
As transformações nas sociedades prometem ser grandes e duradouras. O mundo está a viver a primeira grande experiência síncrona de teletrabalho e de teleconferências. Caso as próximas semanas provem que é possível trabalhar, reunir e até ir a eventos no mundo digital, estaremos a falar de muitos milhares de movimentos pendulares diários que serão anulados, espaços físicos que poderão ser reaproveitados, e redução de danos climáticos. Mas para muitas outras indústrias, vivemos o caos. O turismo estará congelado durante meses; a indústria dos eventos também. Percebemos que a famosa gig economy, dos estafetas aos freelancers, passou das vantagens de fazer o próprio horário à desvantagem da insegurança laboral em tempo de crise: não só não há trabalho, como é difícil encontrar benefícios que o substituam.
As implicações política são extremas. Espanha, França, Alemanha, mas sobretudo Itália, vivem a braços com milhares de casos, um número considerável de mortos, e sistemas de saúde em implosão. A União Europeia está paralisada, com cada estado-membro a tratar primeiro de si e depois dos outros. França e Alemanha anunciaram que iriam proibir a exportação das máscaras que produzem, vários países fecharam fronteiras unilateralmente. O Reino Unido está a assumir uma estratégia totalmente diferente daquela que é adotada no continente e escolheu não se sentar à mesa nos organismos de coordenação europeus.
Os Estados Unidos sofrem as consequências de três anos de Trump, com agências federais debilitadas, uma administração de yes-men e uma falta de transparência enorme. Ao ver a situação descontrolada, Trump aproveitou para espetar mais uma faca na relação transatlântica, culpando a União Europeia pelo alastrar da doença em território americano - falso, é claro. A Rússia vai escapando às atenções, mas suspeita-se que existam já casos em abundância não declarados no seu território, à semelhança do que acontece também com a Turquia.
A China, primeiro país a sofrer, e a quem muitos fizeram o funeral antecipado, está novamente de pé, mostrou ser capaz de resolver o problema com uma eficiência arrasadora, e tem agora somado vitórias diplomáticas. Um exemplo disso é o apoio, com recursos materiais e humanos, a Itália, quando a União Europeia não tinha ainda começado a falar nessa hipótese. Outro, a promessa de ajuda à Europa no instante seguinte à declaração de "guerra" sanitária de Trump. Tudo isto irá ajudar a China a afirmar-se na cena global, e descobriremos mais tarde o preço a pagar pela ajuda. O contra-ataque final é a vergonhosa campanha que pretende reescrever a história do vírus e mover a sua origem para os EUA, uma falsidade que, esperemos, não passará.
Enquanto isto, o petróleo e as bolsas caem a pique. Quando o cenário de emergência de saúde acalmar (ainda faltam alguns meses, segundo várias estimativas), a economia estará a braços com uma grave crise, a mais grave desde 2009, e cujos estragos ainda será precoce calcular. A economia globalizada em que vivemos está a confrontar-se com dois problemas aparentemente contrários: por um lado, a centralização de produção de alguns items em um ou dois países, por outro a descentralização de cadeias de produção que, sendo interrompidas num dos elos, ficam reféns. Medicamentos, equipamento de proteção, reagentes dos testes para COVID19 - alguns exemplos que ilustram estes problemas.
"There"s no such thing as society", dizia Thatcher. Esta é uma altura em que fica claro o erro da Dama de Ferro. As sociedades existem e o comportamento coletivo não é a simples soma dos comportamentos individuais. Se não formos capazes de construir sociedades resilientes, seremos vulneráveis enquanto indivíduos, tão a salvo quanto os mais frágeis (com exceção dos super-ricos e dos seus bunkers no deserto). Fica também provada a importância, ainda e sempre, do mundo físico, que sustenta o digital.
O papel de cada um é fundamental, diz o bom senso e dizem-nos os especialistas. Quanto melhores os comportamentos que adotarmos, mais rápida será a resolução. Certezas? O mundo será um lugar diferente depois de tudo isto.