Um doente oncológico tem direito a benefícios sociais e fiscais. Uma pessoa com mobilidade reduzida também tem direito a este tipo de benefício, nem que seja só para a compra de carro e acesso a dístico de estacionamento. Um doente que desenvolva doenças degenerativas, como demências, tem direito a apoio. Uma mulher que tenha ficado com uma lesão na bexiga provocada pelo parto também pode ter apoios..A questão é que todos necessitam de um atestado multiusos validado por uma junta médica que comprove o grau da sua incapacidade. E, independentemente da decisão final, da justiça ou não dos critérios, todos têm de passar pelo mesmo processo burocrático, pelo mesmo tempo de espera, que vai dos seis meses até aos dois anos, dependendo este apenas da região em que reside..Um doente oncológico, por exemplo, cujo diagnóstico já foi validado por um médico especialista, e cuja incapacidade, na maioria dos casos de 60%, é definida por decreto, necessita da validação de uma junta médica.. Para os médicos de saúde pública, que representam a autoridade de saúde e o Estado neste processo, tal não faz qualquer sentido. Esta e outras situações deveriam ter atribuição direta de incapacidade, porque o diagnóstico já foi feito por um médico. O certo é que esta e outras situações vão-se acumulando e aumentando o tempo de espera dos utentes para a decisão final, que, de acordo com a lei, deveria ser dada no prazo de 60 dias úteis..Pandemia agravou situação. A pandemia anda veio agravar mais a situação, já que para uma junta médica são necessários três médicos de saúde pública. E estes têm tido um papel essencial no controlo da covid-19, tendo mesmo havido a necessidade de o próprio Ministério da Saúde ter de suspender a emissão deste tipo de atestados por decreto, para aliviar os profissionais de saúde pública..Só em junho voltou a legislar para autorizar que as Administrações Regionais de Saúde (ARS) contratassem médicos de todas as áreas para que a função fosse retomada. Algumas ARS já o começaram a fazer, outras ainda não. Mas os médicos dizem que "vão ser precisos sete dias de trabalho de oito horas cada, pelo menos, para resolver o que ficou suspenso".. O problema não se resume só às juntas que já estavam agendadas e que ficaram suspensas com a pandemia. O problema é que esta lista aumenta a cada dia que passa e à medida que mais utentes vão submetendo pedidos de apoio via internet. E "estes ainda nem sequer foram contactados para uma marcação", alerta Gustavo Borges, vice-presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP)..Lisboa tem 13 mil suspensas, norte mais.Ao todo, e de acordo com os dados disponibilizados ao DN pelas cinco ARS do país, a pandemia suspendeu mais de 45 mil juntas médicas de avaliação de incapacidade (JMAI). Senão vejamos: a ARS do Norte, que se recusou a dar o número de juntas suspensas, confirmou ao DN que, a 31 de dezembro de 2019, tinha 25 666 pedidos em submissão, tendo realizado ao longo desse ano 35 376 juntas..Na resposta, esta ARS refere que destas 25 666 houve uma parte que foi efetivada até ao início da pandemia, sem nunca dizer qual, mas ao DN médicos de saúde pública garantem que das mais de 25 mil só um quinto deve ter sido realizada. Ou seja, à volta de cinco mil. E, mesmo assim, "estamos a ser muito otimistas"..O que quer dizer que dos pedidos submetidos e já agendados para o ano de 2020 na ARSN, a maior do país, cerca de 20 mil juntas podem ter ficado suspensas. Se juntarmos estas aos números fornecidos pelas ARS de Lisboa e Vale do Tejo, Centro, Alentejo e Algarve, teremos um total de, pelo menos, 45 mil juntas suspensas e utentes à espera.. Na ARSLVT, em 2019 foram realizadas 24 528 juntas e, desde o início da pandemia, ficaram por realizar 13 886. Neste momento, dos 15 agrupamentos de centros de saúde (ACES), dez já retomaram esta atividade, os restantes deverão iniciar ainda neste mês..ARS só agora retomam atividade.Segundo explicaram ao DN, assim que o governo autorizou a contratação extraordinária de médicos, mesmo reformados, para esta função, que as ARS começaram a enviar e-mails e a recrutar profissionais interessados em desempenhar a atividade. "Não tem sido fácil", mas "há sempre uns colegas que durante muito tempo desempenharam esta função e que estão reformados e que não se importam de a continuar, ou então médicos de outras áreas que têm mesmo formação de avaliação de dano e já fazem o mesmo para a Segurança Social, em juntas médicas relativas ao trabalho"..A ARS do Centro foi a primeira a retomar esta função. Foi logo em junho e, neste momento, já todos os ACES estão a fazer juntas médicas. Só a região de Castelo Branco é que irá recomeçar no dia 10 de agosto. Médicos de saúde pública referem ao DN que esta é a região que menos lista de espera tem e com menos prazos..Neste momento, a ARSC confirmou ter realizado em 2019 um total de 14 371 juntas e que, de janeiro a março de 2020, fez 3555, tendo sido suspensas 5410..As ARS do Alentejo e do Algarve andam perto destes números. Neste mês, começaram a ser feitas juntas no ACES Alentejo e nas unidades de saúde locais do Norte Alentejano e do Baixo Alentejo..A ARSA confirma que, em 2019, realizou 4881 juntas e que, no primeiro trimestre deste ano, fez 644. Ao todo, ficaram por fazer 3638 juntas..No Algarve, a ARS confirma terem sido suspensas 2300 juntas, que, entre janeiro e março, realizou 882 e que, em 2019, foram feitas 3839. Por agora, a atividade ainda não foi retomada, mas os três ACES da região já conseguiram constituir equipas para regressar à avaliação de utentes. Aliás, estão já programadas juntas extraordinárias para doentes oncológicos e em hemodiálise..Os dados de juntas suspensas divulgados pelas ARS de LVT, Centro, Alentejo e Algarve, totalizam 25 234, o que associado à realidade do norte, que poderá ter cerca de 20 mil suspensas, significa que há mais de 45 mil pessoas à espera de um atestado de multiusos..A ANMSP tem noção da realidade, mas, como diz, a solução tem de passar por uma alteração do paradigma, em relação ao objetivo do atestado de incapacidade como em relação a quem os deve emitir..Atestados devem ser repensados."Os médicos de saúde pública são fustigados há anos com as juntas médicas", desabafa Gustavo Borges, quando estas "não deveriam estar dependentes da nossa área. Não condizem com o objetivo da especialidade. A saúde pública quer pessoas menos doentes e mais saudáveis, que durem mais anos de vida, e, como deve calcular, passar um atestado com uma incapacidade multiusos é capaz de trazer conforto ao doente, porque tem mais apoios, mas a verdade é que não reduz mortalidade, morbilidade e não aumenta a esperança de vida". Por isso, "não faz sentido esta função estar do nosso lado"..O dirigente da ANMSP diz ainda que o objetivo do atestado deve ser repensado, como os critérios de avaliação. "Não há procedimentos padronizados, o que torna cada vez mais difícil a avaliação dos utentes", podendo levar à criação de barreiras injustas para muitos deles..Na sua opinião, seria mais "interessante que estes apoios sociais e fiscais ficassem associados à tipologia da doença ou ao impacto que esta tem no dia-a-dia da pessoa, em vez de estarem associados a um valor, 60%, que é o assumido tecnicamente, e que, por vezes, não tem qualquer correspondência com a realidade.".E dá exemplos. "Tivemos o caso de uma senhora, já reformada, que tinha uma doença genética associada a uma vasoconstrição cerebral que lhe estava a provocar início de demência. A senhora veio à junta sozinha porque ainda estava orientada, de acordo com os critérios da tabela, ficou com uma incapacidade de 35%, o que não lhe deu direito a apoios, mas a doença dela é de tal ordem grave a nível neurológico que vai precisar deles, só que naquele momento ainda não era assim." Resultado: a única solução é a senhora mais tarde, ou já alguém por ela, voltar a requerer este tipo de apoio, "porque vai precisar deles", sublinha Gustavo Borges.."A tabela foca-se em determinados diagnósticos que, muitas vezes, estão desfasados do que é a realidade das pessoas. Não é uma boa tabela para avaliar a incapacidade do dia-a-dia.".Gustavo Borges não tem dúvidas de que há situações a que o atestado multiusos não deveria dar acesso e que há outras que não dá e que deveria dar. Não tem dúvidas de que "deveria haver também outras formas de acesso. Há casos em que deveria bastar o relatório do médico de família ou do médico que segue o doente, como os oncológicos, o acesso deveria ser automático..Desde 1976 nas juntas médicas.As juntas médicas foram criadas em 1976 para ressarcir os deficientes das forças armadas com incapacidades. Dois anos depois, o Estado decreta que é o delegado de saúde concelhio que, em sua representação, passa a emitir uma declaração de incapacidade para todos os civis, mas o primeiro documento que define que as juntas médicas sejam compostas por autoridades de saúde é de 1990 e atualizado em 1996..A própria tabela técnica de avaliação, que assenta numa elaborada por peritos europeus, data de 1960, e foi atualizada em 1993 e 2007, mas ainda tem muitas lacunas. "No início as juntas foram sendo feitas, os médicos de saúde toleraram a situação, mas com o passar dos anos o atestado foi tendo cada vez mais benefícios associados e disparou o número de pessoas a solicitá-las", argumenta Gustavo Borges..O primeiro grande boom de juntas médicas teve que ver com a isenção das taxas moderadoras. "Era preciso uma incapacidade de 60%, mas um diabético controlado com insulina não atingia esta incapacidade, ficava nos 40%, e não é justo.".Nem todas as pessoas com incapacidade e insuficiência económica têm direito aos benefícios, mas todos os casos fazem crescer a lista de espera. A secretária de Estado adjunta da Saúde, Jamila Madeira, admitiu recentemente haver "um atraso muito significativo", que o governo está "a tentar recuperar". A governante referia-se às situações de emissão de novos atestados, porque "a renovação ou prorrogação da validade dos atestados já passados foi prorrogada até 31 de dezembro"..Neste momento, as juntas podem ser realizadas por clínicos de qualquer área, e os médicos de saúde pública esperam que assim continue, pois é o que reivindicam há muito. A pandemia está a mostrar que eles são fundamentais noutras funções e, por isso, a AMSP defende que seja definida uma nova orientação jurídico-legal para as juntas médicas.."A Segurança Social faz juntas médicas para a área do trabalho e para a reforma, porque não se reformula este sistema? Estamos a ter recursos da saúde pagos pela saúde só para emitir um documento sobre o qual a única entidade que beneficia é a Segurança Social", argumenta o médico. .Para que tal aconteça é preciso que a lei seja alterada. A verdade é que "já tivemos duas comissões de reforma da saúde pública das quais emanavam sugestões sobre a reorganização deste tipo de função, defendendo a a saída da saúde pública, e nada aconteceu"..A ministra da Saúde analisa nova proposta de reforma em que se defende que as juntas devem passar para as ARS, Segurança Social ou centros de avaliação. "É importante que haja uma reforma do paradigma", dizem.