Investigadores do Centro de Investigação de Materiais (Cenimat), da Universidade Nova de Lisboa (FCT-Nova), estão a estudar aplicações para o desperdício resultante da indústria corticeira. Neste laboratório, tenta-se aproveitar ao máximo a matéria-prima e combater as perdas. Entre muitas das pesquisas, há uma que envolve uma membrana biodegradável que num futuro próximo poderá vir a substituir os plásticos que envolvem os alimentos. Além de ecologicamente sustentável, pode ser uma solução para evitar que milhares de toneladas de alimentos sejam atirados para o lixo..No Cenimat trabalha-se a cortiça em várias vertentes. Começando pela mais simples: a sua utilização como substrato para impressão de dispositivos eletrónicos. "Trabalhar o substrato desta matéria-prima é um desafio, sobretudo por ser pouco plano. É preciso preparar a superfície e depois otimizar as camadas, que são sobrepostas", afirma Luís Pereira, investigador e coordenador de vários projetos neste centro..Todos os materiais usados no laboratório são de origem natural ou pouco agressivos para o ambiente, como é o caso do carbono, um grande condutor usado para dispositivos, bem como as tintas das camadas ativas, que são elaboradas a partir de partículas de óxido de zinco. Depois, para manter as partículas juntas nas camadas que são impressas, é necessário um ligante, à base de um derivado de celulose, que é o carboximetilcelulose. Todos os produtos ali utilizados são amigos do ambiente..Dispositivos vestíveis.Em termos práticos, estes dispositivos podem ser usados em sensores ultravioleta, que detetam a intensidade da radiação UV. São particularmente importantes para os dispositivos vestíveis (wearables), podendo ser integrados em peças de roupa, pulseiras, relógios, sapatos ou até óculos de realidade virtual. Estuda-se também a possibilidade de otimizar estes sensores à base de cortiça para outras funcionalidades, como indicadores de temperatura ou humidade..Dispositivos médicos e biomédicos.Esta é a vertente em estudo da cortiça enquanto substrato. Indo além, está também a ser trabalhada a desconstrução desta matéria-prima. O pó de cortiça, um subproduto muito abundante, e que é desperdiçado pela indústria corticeira, permite a formulação de compósitos com um polímero biocompatível, o PDMS (polidimetilsiloxano), que tem aplicações termoelétricas em dispositivos médicos e biomédicos. A cortiça, por si só, não é um material termoelétrico, mas é um bom isolante, explica Luís Pereira. Por conseguinte, a cortiça tem de ser impregnada com um material semicondutor à base de óxido de zinco, permitindo que seja gerado um fluxo de cargas e, consequentemente, uma corrente elétrica. Porém, ainda não se atingiram valores de eficiência que justifiquem a utilização desta tecnologia em massa..Ainda com o pó de cortiça, os investigadores estão à procura dos seus constituintes. Através de uma técnica que consiste numa função química chamada hidróxido (os exemplos mais conhecidos são o hidróxido de sódio, vulgarmente conhecido como "soda cáustica", e o hidróxido de potássio, também conhecido como "potassa cáustica"),obtém-se a suberina, também presente na casca da batata ou do tomate, embora em menor quantidade. A suberina, que é um polímero, tem uma estrutura muito complexa e por isso não é fácil isolá-la..O que acontece durante o processo é que, além de se obter suberina, esta vem misturada com outros constituintes da cortiça. A intenção é tentar alcançar um método que permita obter a maior quantidade possível de suberina. Existem outras técnicas, com solventes mais caros e tóxicos, mas o que esta equipa está a tentar conseguir consiste num equilíbrio entre o método e o rendimento. Atualmente, trabalha-se com uma mistura de hidróxido de sódio e água. Eleva-se a temperatura e aguardam-se alguns dias, até que se consiga extrair do pó de cortiça uma solução em que se tenha a separação da suberina juntamente com os outros constituintes da cortiça..As aplicações da suberina.Segundo o investigador, a suberina tem propriedades antimicrobianas extraordinárias, e, quando dissolvida, obtém-se um caldo que depois de solidificado cria membranas. Por conterem lítio e sódio, são condutores iónicos, ou seja, eletrólitos. Estas membranas, quando secas, podem ser aplicadas em transístores. Em resultado das suas propriedades antimicrobianas, podem estar em contacto direto com a pele, quase como se fossem tatuagens, permitindo a monitorização da pulsação, da pressão arterial, da concentração de sais no suor, e até são passíveis de ser um indicador indireto de algumas doenças. Outra vantagem: por ser um método não invasivo, é pouco suscetível de provocar reações alérgicas. Por outro lado, estas membranas são altamente resistentes e duráveis, nem sequer são solúveis na água..As aplicações com o desperdício de cortiça são inúmeras. Outra área em estudo consiste na integração da suberina com fibras de celulose para formar outro tipo de membranas, mas com as mesmas propriedades antimicrobianas. Este processo resulta num material que, além de natural, é reciclável. "No final de vida pode ser destruído sem grande impacte ambiental.".A mais importante aplicação destas membranas à base de suberina e celulose, ainda em estudo, é na substituição dos plásticos usados em algumas embalagens, sobretudo aqueles em contacto com os alimentos.."O uso do plástico generalizou-se por ser uma excelente barreira à humidade e ao oxigénio, retardando a degradação dos alimentos", destacou o coordenador de projetos. Os esforços da equipa têm sido no sentido de desenvolver membranas (suberina + celulose) com propriedades muito semelhantes às do plástico. A suberina, como já referido, além das suas propriedades antibacterianas, também é hidrofóbica (repele a água), por conseguinte pode muito bem vir a substituir o plástico nas embalagens em contacto com os alimentos..Futuramente, este mesmo material, integrado com dispositivos (também estes naturais), poderá ser aplicado em embalagens inteligentes, indicando o prazo de validade de um produto - atualmente, este é estimado por método estatístico. Por exemplo, se um destes sensores estiver no interior de uma embalagem com carne, poderá transmitir com exatidão dados sobre o estado de conservação do alimento; a validade será muito precisa e evitar-se-á o desperdício alimentar. O consumidor poderia deixar de se fiar em análises estatísticas, passando a saber, com precisão, se um produto alimentar está em condições de ser consumido, bastando para isso, por exemplo, fazer a leitura com um smartphone..Todas estas aplicações estão ainda em fase de estudo laboratorial. Logo, não estão no mercado. Mas prevê-se que isso possa acontecer a muito breve prazo. Tem havido contactos, adiantou o cientista..É uma tecnologia cara?.O investigador é categórico. Não é uma tecnologia cara. Uma das preocupações da sua equipa de trabalho é utilizar materiais abundantes e naturais, consequentemente baratos. E as técnicas também não são caras. Os sensores são feitos através de skin printing (semelhante à técnica de serigrafia, usada na estampagem de T-shirts). A diferença reside nas dimensões e na definição dos padrões, muito superior à aplicada pela indústria têxtil. "Mas é uma técnica muito semelhante. Consiste na transferência de um padrão para uma tela. Tentamos sempre usar a técnica de impressão, muito fácil de ser implementada à escala industrial. E nada dispendiosa.".De todo o trabalho que está a ser desenvolvido no laboratório, a aplicação de membranas para substituírem os plásticos nas embalagens é a que está no estado mais avançado. "É uma área com muito impacto. Para já, porque envolve um grande volume, e há um grande estigma à volta do plástico. Por isso, a utilização de um polímero à base de suberina e celulose para aplicação nas embalagens alimentares com propriedades semelhantes às do plástico tem uma grande potencialidade. É um mercado muito grande e com forte impacto ambiental..Dados do Projeto de Estudo e Reflexão sobre Desperdício Alimentar (PERDA) estimam que a nível nacional o desperdício alimentar seja de um milhão de toneladas por ano, dos quais 342 mil são desperdiçados a nível do consumidor. Há perdas ao longo de toda a cadeia alimentar, desde a produção e o processamento, passando pela distribuição e venda, até ao consumidor. Uma situação destas é insustentável pelas consequências que acarreta. Não só milhares de pessoas que passam fome poderiam ver as suas necessidades alimentares satisfeitas - se as sobras e excedentes fossem corretamente direcionados, como também o ambiente se ressente. Nunca é de mais enfatizar a máxima "Comida desperdiçada é dinheiro desperdiçado".