Corrida espacial 2.0: De novo o grande jogo das potências
Em 1950, quando Georges Remi iniciou a aventura dupla de Tintin Rumo à Lua e Explorando a Lua, o homem que assinava Hergé decidiu situar o cosmódromo na fictícia Sildávia. Conta quem sabe que o guião original, escrito pelo cientista Bernard Heuvelmans e pelo chefe de redação da revista Tintin Jacques Van Melkebeke, situava a base de lançamento numa localidade fictícia, mas norte-americana.
À época, em caso de opção não ficcional, os Estados Unidos seriam a escolha natural. O rival da guerra fria desenvolvia o seu programa espacial em secretismo - em 1957, o lançamento do primeiro satélite artificial, o Sputnik, foi uma surpresa geral. Se o "intrépido repórter" do Le Petit Vingtième e os seus companheiros de aventuras fossem hoje enviados para uma nova aventura espacial que não na Sildávia, o leque de opções seria muito maior.
Aos Estados Unidos e à Rússia (a herdeira da URSS) e à corrida espacial que protagonizaram entre as décadas de 1950 e 70 juntaram-se vários países: a China, a Índia e o Japão em especial, mas também os 22 países membros da ESA, a Agência Espacial Europeia (Portugal incluído), e oito países cooperantes, entre os quais o Canadá.
Se a União Soviética foi a precursora em várias etapas da corrida espacial, os Estados Unidos acabaram por se adiantar na competição, com seis missões Apollo bem-sucedidas, entre 1969 e 1972, na missão de transportar astronautas à Lua. Desde então, a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA) não mais voltou a ter orçamentos que equivaliam a 4% do PIB dos Estados Unidos, mas conseguiu garantir um avanço tecnológico e de capacidade quase hegemónica. Hoje, o orçamento da NASA equivale a 0,48% do PIB (a segunda percentagem mais pequena de sempre), mas ainda assim corresponde a 22,5 mil milhões de dólares. A Rússia aprovou em 2016 um orçamento a dez anos de 20 mil milhões de dólares, um corte de 30% em relação ao previsto.
Em 1975, a missão conjunta Apollo-Soyuz, na qual os três astronautas norte-americanos e os dois cosmonautas russos se juntaram em órbita, marcou o início de uma nova era, mais aberta à cooperação. Um segundo e longo capítulo tem sido o da Estação Espacial Internacional, um projeto que envolve russos (Roscosmos) e norte-americanos (NASA), mas também japoneses (JAXA), canadianos (CSA) e 11 países europeus da ESA (Portugal excluído), marcado pela ininterrupta presença, desde novembro de 2000, de astronautas, e, mais recentemente, também de turistas espaciais.
Há mais exemplos de frutos colhidos pela conjugação de esforços. Só nos anos 1990, a dupla NASA-ESA pôs em órbita o telescópio Hubble, a sonda Ulysses ao Sol, o observatório solar SOHO e a sonda Cassini-Huygens a Saturno.
Olhando para o futuro, que é como se quer quando o tema é a exploração espacial, Artemis é o nome do programa que tem como objetivo levar a primeira mulher à Lua até 2024, numa missão liderada pela NASA e com a participação da ESA, da JAXA, e da Agência Espacial Australiana. Segundo a agência federal norte-americana para o espaço e aeronáutica, a missão tem um custo de 35 mil milhões de dólares.
Num estádio de alguma incerteza quanto à sua concretização estão outras duas missões não tripuladas à Lua: a exploração polar da Lua, apontada também para 2024, com a Índia (ISRO) e o Japão a fazerem equipa; e a missão Heracles, com os japoneses a associarem-se, desta feita, a europeus e canadianos, para terem em 2027 um veículo robotizado a explorar o satélite da Terra.
"Júpiter e Saturno, Oberon, Miranda e Titânia/Neptuno, Titã, as estrelas podem assustar", cantavam os Pink Floyd em Astronomy Domine. Talvez por isso, ou mais simplesmente pela proximidade, a Lua e Marte continuam a ser objeto de interesse de grande parte dos projetos espaciais. Nos últimos dois anos, chineses, israelitas e indianos enviaram, com graus diversos de sucesso, naves à Lua. Até 2025, e excluídas as viagens do Artemis, a agenda lunar está preenchida com 19 missões dos países já referidos, mas também da Coreia do Sul e de empresas privadas do Reino Unido e da Alemanha. Ao chamado planeta vermelho há seis missões calendarizadas até 2024, da sonda orbital dos Emirados Árabes Unidos às missões em solo marciano de EUA, China, Japão, ESA e Rússia e à lua de Marte, Fobos, Japão, Alemanha e França.
Se a diversidade de atores na indústria espacial está à vista, quer ao nível estatal quer privado, a forma como os países se relacionam condiciona o nível de cooperação. Um regresso às tensões entre Moscovo e Washington deu-se em abril, quando o diretor da agência espacial russa, Roscosmos, acusou a empresa SpaceX de Elon Musk de praticar dumping nos preços dos lançamentos espaciais, bem como a administração Trump de financiar a empresa. "Em vez de uma concorrência honesta no mercado de lançamentos espaciais, estão a exercer pressão para que nos sejam aplicadas sanções e a utilizar impunemente o dumping de preços", escreveu Dmitry Rogozin no Twitter.
Depois de a NASA ter desativado os vaivéns espaciais, em 2011, a Roscosmos ficou em exclusivo com o negócio de enviar astronautas para o espaço, ao preço de 70 milhões de dólares. Rogozin, que reagiu às sanções económicas norte-americanas à Rússia com a sugestão de enviar os astronautas para a Estação Espacial Internacional de trampolim, anunciou agora um corte de 30% no preço do serviço.
Na ocasião, o presidente Vladimir Putin classificou o setor espacial como um dos "mais vitais da economia nacional", e pediu um plano de trabalho de toda a indústria a médio e longo prazo, para o "reanimar até à sua plena capacidade". Há três anos, um especialista avisava, em declarações à Space News, sobre o panorama: "A indústria espacial russa está em profunda crise." Para Pavel Luzin, a Rússia enfrenta uma escolha: "Ou muda ou perde as suas capacidades espaciais."
Quem está a aproximar-se das capacidades das potências espaciais é a China. É o país que mais investe a seguir aos EUA: 7,2 mil milhões de euros em 2019 (segundo a Time, os números mudam consoante as fontes), seguido da ESA, com 6,6 mil milhões de euros para 2020. Bem longe estão o Japão com 1,6 mil milhões de euros em 2019 e a Índia com um valor semelhante para 2020. "Se continuarem nesta trajetória vão rapidamente eclipsar a Rússia em termos das suas capacidades tecnológicas espaciais", afirma Todd Harrison, especialista em programas espaciais militares no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington à AFP.
O programa espacial chinês reproduziu os passos de outros países: primeiro satélite em 1970, primeira missão espacial tripulada em 2003 (é o terceiro país a fazê-lo), míssil antissatélite em 2007, primeira acoplagem de uma nave espacial tripulada a um módulo em órbita em 2012, alunagem no lado oculto da Lua em 2018 (pioneiros) e o sistema de navegação por satélite BeiDou, a alternativa ao GPS, deverá estar a funcionar até ao fim do ano.
Mas se todos os países têm contratempos seja no lançamento, seja durante a viagem, seja ainda ao pousar as naves, a China deu uma imagem pouco credível ao propor usar um satélite para funcionar como uma lua artificial. O objetivo seria poupar dinheiro com a iluminação noturna. Mas como disse à Discover Magazine o professor de Engenharia Aerospacial Iain Boyd, seria necessária uma constelação de satélites para darem luz, pelo que o custo do lançamento e de reabastecimento não compensaria.
Os EUA veem a China como um adversário no espaço e, por lei, a cooperação espacial está proibida desde 2011. Os políticos indianos não proibiram, mas não irão decerto instigar à cooperação sino-indiana. Em 2003, dias depois de Pequim ter anunciado que iria enviar um homem para órbita, o então primeiro-ministro da Índia Atal Vajpayee exortou os cientistas a enviarem um homem para a Lua. Em resposta ao teste antissatélite chinês de 2007, o ISRO formou uma unidade espacial integrada para gerir os seus futuros recursos militares espaciais e comprometeu-se a desenvolver armas terrestres antissatélite. Se na Rússia os pioneiros da aventura espacial como Yuri Gagarine ou Serguei Korolev são heróis nacionais, na Índia há também um orgulho em relação ao programa espacial. A sonda orbital Mangalyaan, que viajou até Marte em 2013, foi homenageada na nova nota de duas mil rupias.