Entre a pilha de diplomas que ainda tem para promulgar está precisamente o da gestação de substituição e que foi aprovado sem uma norma que o Tribunal Constitucional (TC) considerava indispensável para a lei ser constitucional e que levou a sua suspensão em 2018. A lei voltou a ser aprovada pelos deputados, em julho deste ano, no último dia de trabalhos parlamentares, sem prever que a gestante de substituição possa rever o contrato de entrega da criança até ao seu nascimento. O Bloco de Esquerda tinha feito uma alteração ao artigo contestado pelos juízes do TC - depois de ter sido pedida a fiscalização preventiva por vários deputados centristas e social-democratas - no sentido de prever esse período de "arrependimento", mas acabou chumbado por PSD, CDS e PCP.."Este diploma é um teste para perceber se o Presidente dispensa mesmo a fiscalização preventiva, se promulga sem pedir ao Tribunal Constitucional que se pronuncie", afirma Jorge Reis Novais. O constitucionalista sublinha que esta "é um caso típico" de uma lei que deveria ser enviada para o Palácio Ratton. "Se assim não acontecer, confirma aquela ideia de que o Presidente não quer fazer uso daquele instrumento.".Reis Novais afirma ainda que houve diplomas promulgados pelo Presidente em que existiu inconveniente em não ser pedida a fiscalização preventiva, como é o caso da nova lei dos metadados, promulgada em 2017, e que o TC deverá dentro em breve considerar inconstitucional, na sequência do pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade feito em janeiro de 2018 por BE, PCP e PEV..Marcelo deu o aval a uma lei que prevê que os serviços secretos (SIS e SIED) possam consultar dados de tráfego de telecomunicações e internet de suspeitos de espionagem, terrorismo e criminalidade organizada. Os juízes ainda não deliberaram, mas fontes do TC revelaram que os juízes já manifestaram as suas posições e a maioria é contrária àquela possibilidade..Em causa está a violação do artigo 34 da Constituição da República Portuguesa que diz respeito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência. Já em 2015, o TC tinha chumbado uma lei semelhante do governo de Passos Coelho, por considerar que a ingerência nas telecomunicações dos cidadãos só poderá ocorrer "no âmbito de um processo criminal". Como as secretas não realizam investigação criminal, o acesso aos dados de tráfego das comunicações estava vedado, na ótica dos juízes do TC..Este diploma e o da gestação de substituição (se não for enviado para o Palácio Ratton), diz Reis Novais, que foi assessor constitucional do antigo Presidente Jorge Sampaio, mostram que Marcelo Rebelo de Sousa "está no limite do que é adequado" no que diz respeito à promulgação das leis, já que "há uma inadequação da prática do Presidente mesmo quando há dúvidas sérias ou até certezas" sobre a constitucionalidade das leis..O antigo deputado social-democrata e também constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia também assinala o "facto inédito" de um presidente querer dispensar o recurso ao TC, órgão presidido por um antigo deputado do PSD e penalista, Manuel Costa Andrade. "O Presidente faz uma interpretação muito minimalista dos seus poderes quanto ao pedido de fiscalização ao TC, talvez entenda que só deveria pedir quando há certezas de inconstitucionalidade, mas os pedidos de fiscalização preventiva ou sucessiva baseiam-se em probabilidades", reforça..Os constitucionalistas não encontram uma explicação lógica para esta opção presidencial, que nenhum outro antecessor seguiu. Jorge Bacelar Gouveia prefere uma teoria "psicológica", a de que Marcelo não quer ser desautorizado por juízes do TC que não são catedráticos de Direito Constitucional como ele. "Mas não podemos confundir orgulho académico com questões judiciais", diz..Jorge Reis Novais frisa que nunca ouviu Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto constitucionalista ou como líder partidário, pronunciar-se contra a fiscalização preventiva das leis. O facto de o Presidente da República ser professor catedrático de Direito Constitucional não lhe permite dispensar a avaliação do TC quando há dúvidas sobre os diplomas, segundo Reis Novais. "As questões constitucionais são controversas e o que conta é a opinião do TC", diz o professor, que considera que a opção de Marcelo de não recorrer ao TC "desvaloriza" o órgão..A mesma opinião tem Jorge Bacelar Gouveia, embora o presidente do conselho científico da Faculdade de Direito da Universidade Nova admita que as "grandes querelas" de fiscalização da constitucionalidade já pertencem ao passado. "A Constituição já se sedimentou com as mudanças que foram feitas e tendemos a ter menos questões de inconstitucionalidade num sistema que foi amadurecendo", afirma.