A festa correu mundo e o mundo celebrou com eles o apuramento histórico para a Taça das Nações Africanas (CAN), que se joga no início de 2022 e conta já com 14 apurados (incluindo as surpresas Gâmbia e Cabo Verde). Mas o feito da União das Comores é estrondoso a muitos níveis e celebra aquilo que o futebol tem de melhor..É certo que beneficiaram de um alargamento a 24 seleções, mas a seleção já vinha dando sinais de crescimento há algum tempo. O que por si já é histórico num país com uma situação política e social complicada, com mais de 20 golpes de estado em 50 anos. Formada depois da independência, em 1979, a seleção da União das Comores começou por participar nos Jogos das Ilhas do Oceano Índico. Mas só em 2003 se filiou na Confederação Africana de Futebol e em 2005 foi reconhecida pela FIFA..Twittertwitter1375114262364979200.Os primeiros passos foram a par das expressivas goleadas. A equipa participou em duas edições da Taça Cosafa (torneio regional africano), em 2008 e 2009, e não passou da fase de grupos. A primeira grande vitória foi quando passou a ser incluída no sorteio da CAN em 2010. Com o passar dos anos, as goleadas foram perdendo expressão e começaram a surgir resultados surpreendentes frente a algumas das melhores equipas africanas. Em 2015 eliminaram o Lesoto na qualificação e empataram com o Gana (0-0). Um ano depois mais um triunfo indicador do crescimento, com a primeira vitória em eliminatórias da CAN frente ao Botsuana. Seguiram-se empates com os Camarões e Marrocos e uma vitória sobre o Malaui..Pelo meio foram eliminados no apuramento para o Mundial 2022 pelo Togo, seleção que estaria ligada à maior glória do futebol comorense. No apuramento para a CAN calharam num grupo juntamente com Egito, Quénia e Togo. E alcançaram um apuramento inédito após uma vitória em Lomé (1-0) e empates com o Egito(0-0) e no Quénia (1-1). Os quenianos perderam depois no arquipélago (2-1) deixando as Comores com uma combinação de resultados favorável..Os celacantos (espécie de peixe nativa da zona) só precisavam de um empate com o Togo para carimbar a qualificação. Foi o que aconteceu a 25 de março. Apesar das restrições por causa da pandemia, o jogo foi presenciado por cerca de mil adeptos, no Estádio Omnisports de Malouzini, inaugurado em 2019, mandado construir pelo governo para ser casa da seleção. Na segunda-feira passada foram ao Cairo cumprir calendário e desfrutar de um duelo com Salah (perderam por 4-0), algo que parecia impossível há uma década..O rosto do crescimento tem um nome: Amir Abdou. Descendente de imigrantes saídos do arquipélago, o técnico nasceu em Marselha, cidade francesa onde há uma considerável colónia de cerca de 80 mil comorenses. Tinha 42 anos e orientava uma equipa da VI Divisão francesa quando em 2014 foi convidado para ser adjunto de Henri Stambouli, que acabaria por substituir..Com Abdou no comando, os celacantos subiram da 198.ª para a 130.ª posição no ranking FIFA. "Posso ver quão longe chegamos, mas não fico surpreso. É o resultado de muito trabalho duro. Temos muito orgulho e não vamos parar aqui. Ainda há margem para evolução", disse o selecionador ao site da FIFA, destacando "a disciplina, a organização e o fantástico espírito de equipa"..Um dos segredos foi o recrutamento de jogadores com descendência e já nascidos em França. Abdou criou um sistema de recrutamento de atletas nas ligas francesas, pesquisando as origens e ligando pessoalmente a muitos deles para os convencer. Da última convocatória, 20 nasceram em território francês (incluindo três em Mayotte) e, desses, 15 jogam em França..El Fardou Ben Nabouhane, do Estrela Vermelha, é a estrela da equipa. Tricampeão na Sérvia, o avançado tornou-se ainda no primeiro comorense a marcar um golo na Liga dos Campeões em 2019. Nascido em Mayotte, passou pelo futebol das Ilhas Reunião, completou a formação no Le Havre (França) e é autor dos golos mais importantes desta jovem seleção..Ali Ahamada é outra das grandes referências. Nascido em Martigues, chegou a jogar no Toulouse e a representar a seleção francesa nas camadas jovens. Aceitou juntar-se à seleção comorense em 2016, já depois de Nadjim Abdou, ex- Millwall, que é hoje o capitão, o fazer em 2010. Ano em que também Youssouf M"Changama se juntou à equipa - hoje é recordista de participações pelo país. Há ainda Fouad Bachirou, formado pelo Paris Saint-Germain, e que atualmente é reserva do Nottingham Forest..Abdou está ainda de olho em Isaac Lihadji, nascido em Marselha e descendente de comorenses. Tem 18 anos e joga no Lille, mas tem preferido a seleção francesa. Zaydou Youssouf (Saint-Etienne), Wesley Saïd (Toulouse) e Myziane Maolida (Nice) são outros potenciais convocáveis e a presença na CAN pode ajudar a convencê-los..Situadas no Oceano Índico, na parte norte do Canal de Moçambique, entre Madagascar e a costa oriental da África, as Comores como país são três das quatro ilhas do arquipélago com o mesmo nome: Njazidja (Grande Comore), Nzwani (Anjouan) e Mwali (Mohéli)..Os portugueses foram os primeiros europeus a descobrir o local (em 1505), que seria ocupado pelos franceses em 1841. Em 1974 iniciaram uma revolução rumo à independência de França, conseguida de forma parcial em 1975. As ilhas Grande Comore, Anjouan e Mohéli votaram a favor da separação de França e formam atualmente a União das Comores - têm o 178.° PIB do mundo. A ilha de Mayotte, nome dado pelos portugueses no século XVI, manteve-se como parte da República Francesa (é o 101.º departamento do país)..isaura.almeida@dn.pt