Engane-se quem pensa que para se ser rico basta ganhar o Euromilhões. Não só a probabilidade de a sorte lhe bater à porta é ínfima como a tradição mostra que para se ser dono de uma fortuna o principal é mesmo nascer num berço de ouro... ou então ser self-made man e assim chegar à lista dos mais ricos de Portugal e do mundo. Como aconteceu com Belmiro de Azevedo, o engenheiro sem fortuna familiar que ascendeu e criou um império económico..Se não há uma fórmula mágica para se ascender a milionário - nem a chave do Euromilhões surge numa bola de cristal -, há pelo menos uma certeza: afinal, há muitos mais ricos em Portugal do que o próprio fisco pensava. A Autoridade Tributária e Aduaneira identificou mais de 1600 famílias que acumulam cinco milhões de património ou recebem 750 mil euros de rendimento anual - os dados apontavam para menos de metade, mas a partilha de informações ao nível internacional permitiu chegar a estas fortunas que não estavam declaradas..Francisco Louçã, professor universitário com obra publicada sobre esta matéria, pega no caso de Belmiro de Azevedo, falecido há dois anos, como um exemplo de ascensão. "Pode-se dizer o mesmo dos Amorins, que começaram em meados do século XX, enquanto a família Espírito Santo vem já do final do século XIX. Há ainda os Mellos, uma família aristocrática mais ou menos falida mas cujo herdeiro se casa com a filha de Alfredo da Silva, que era o dono da CUF e depois criou o império Mello, e esse prolonga-se ao longo do tempo. Uma herdeira dos Mello casa-se com o Champalimaud, que vem de uma família rica. Nessa aristocracia do dinheiro há uma grande continuidade. A herança é bastante predominante, mas existem casos em que há emergência de novas fortunas, sobretudo ligadas ao capital bancário e à industria.".A família Amorim continua a ser a mais rica em Portugal. Maria Fernanda Amorim (na foto principal com uma das filhas) os herdeiros surgem no topo da lista da edição deste ano Forbes portuguesa como sendo detentora de uma fortuna de 4,173 milhões de euros. Segue, em segundo lugar, a herança deixada por Alexandre Soares dos Santos (3,544 milhões de euros)..Na edição de 2019 da revista norte-americana, os Amorins são também a única referência a fortunas portuguesas - mas não são longínquos os tempos em que Belmiro marcava presença, alternando com Américo Amorim na lista dos bilionários mundiais..Futebolistas, gestores e unicórnios.Podem não ter origem em famílias tradicionais, mas os seus nomes também aparecem nos títulos dos jornais por causa dos zeros (à direita) nos seus salários: gestores e futebolistas. É o caso de Cristiano Ronaldo - no top 20 da Forbes Portugal - com uma fortuna líquida de 439 milhões, ganhos em ordenados, publicidade e outros negócios, como hotelaria em parceria com o Grupo Pestana. Por sinal, Dionísio Pestana entrou diretamente para o quinto lugar da Forbes Portugal com uma fortuna avaliada em 681 milhões de euros..No futebol, Cristiano Ronaldo já leva quase duas décadas a acumular fortuna. Mas há jogadores muito jovens que passaram a ostentar de um dia para outro o título de milionários. João Félix, com a transferência para o Atlético Madrid, passou a ganhar sete milhões líquidos por ano. Não é suficiente para figurar no ranking dos mais ricos do mundo, nem sequer de Portugal, mas não está nada mal para quem acabou de festejar duas décadas de vida. Tanto ele como Ronaldo são considerados pelo fisco português como muito ricos..Ricos são também alguns gestores de empresas privadas que, constantemente, surgem nas notícias pelos elevados salários e pelos prémios que usufruem. "Os gestores do BCP são um caso famoso porque podiam receber 10% do resultado líquido do banco. Jardim Gonçalves chegou a receber três milhões de euros. É mais ou menos isso que António Mexia [presidente executivo da EDP] ganha entre prémios e salários. Estes valores permitem ao longo dos anos alguma acumulação, embora não se comparem com os mil milhões ou os dois mil milhões das fortunas de topo em Portugal. Mas em comparação com a média do país, são valores elevadíssimos e permitem uma acumulação muito significativa", exemplifica Francisco Louçã..Há os gestores, os futebolistas e os unicórnios. Uma das novidades deste ano da lista dos portugueses mais ricos é o facto de o fundador da Farfetch - loja de e-commerce de moda de luxo nacional e internacional - ter subido para a quarta posição com uma fortuna avaliada em 1010 milhões de euros - ou seja, acima do requisito mínimo para uma empresa ser considerada unicórnio. No ano anterior, José Neves figurava no top 10, sendo um dos 18 milionários que construíram fortuna a partir do zero..A nível internacional, as tecnologias têm proporcionado as maiores fortunas do planeta - é o caso de Bill Gates (18 vezes em 23 anos considerado o mais rico do mundo) e que recentemente voltou a surgir no topo do índice de multimilionários da Bloomberg - a sua fortuna é avaliada em 110 mil milhões de euros..Jeff Bezos, CEO da Amazon - que ficou mais "pobre" devido a um divórcio conflituoso -, viu-se relegado para segundo lugar pela Bloomberg com 108,7 mil milhões.."Sorte? A sorte dá muito trabalho a encontrar".Mário Ferreira, 51 anos, é um dos milionários portugueses. Neste ano, o seu nome aparece no top 20 dos mais ricos de Portugal da Forbes, com uma fortuna de 354 milhões. Não herdou nenhuma fortuna, vem de uma família remediada: o pai trabalhava nas gruas do porto de Leixões e a mãe tinha um negócio de restauração.."Comecei a trabalhar na restauração aos 16 anos quando fui para Inglaterra. São precisos muitos anos, muito empenho e apostar nas oportunidades certas", diz ao DN. E explica que se a DouroAzul é a sua empresa mais conhecida em Portugal, a aposta foi na diversificação do negócio - hoje são 32 empresas em ramos diferentes, desde o setor imobiliário aos seguros e aos helicópteros. Mas há um negócio que lhe dá muito gozo, o KIDS.i - Creating an Intelligent Future, um colégio que acolhe crianças desde o pré-escolar ao 4.º ano..O empenho, a vontade de desenvolver trabalho e a aposta no ramo certo voltam a ser as máximas que usa, mesmo quando fala das grandes fortunas do país. "Se as garrafas deixassem de usar rolhas, o que acontecia aos Amorins?".Não é preciso também sorte para ver os zeros multiplicarem-se a conta bancária? "Sorte? A sorte dá muito trabalho a encontrar. É difícil de encontrar quando perdemos muitas horas à procura dela...".São esses valores que Mário Ferreira quer passar aos quatro filhos, reconhecendo mesmo que é sempre uma preocupação que eles saibam dar continuidade à fortuna. "Quero que saibam qual o valor e a responsabilidade do dinheiro, que percebam quanto custa ganhar um euro.".Quando os herdeiros desbaratam fortunas.Nem sempre os herdeiros conseguem manter as grandes fortunas. O economista Francisco Louçã afirma que em Portugal ainda não temos muito tempo para avaliar o que pode acontecer, porque ainda estamos na terceira ou na quarta geração. Mas há um facto: o Grupo Espírito Santo colapsou.."Nos estudos internacionais que vi, os herdeiros normalmente não têm muito sucesso, sobretudo a terceira geração, há muitos conflitos, muita divisão entre herdeiros às vezes entre gerações - veja-se o caso famoso da L'Oréal em que a filha põe a mãe em tribunal para declarar a sua incapacidade e há uma grande luta pela empresa. Não quero generalizar, mas pelo que tenho lido, sobretudo a terceira geração tende a ser mais fraca, menos capaz de estruturar a empresas. O que se compreende, são muitos mais, já viveram com outra facilidade e têm culturas relativamente diferentes. Haverá exceções.".As "guerras" do Euromilhões.Para o comum dos mortais, o Euromilhões é a única esperança de um dia ver a conta bancária recheada. Em Portugal há três sortudos que acertaram no jackpot, mas, tal como os herdeiros de grandes fortunas, nem todos conseguiram manter a riqueza intacta e lutam na justiça por ela. É o caso de Amélia de Jesus, de Marco de Canaveses, uma empregada de limpeza que ficou milionária de um dia para o outro (ganhou mais de 51 milhões) mas que teve de dividir o dinheiro com o ex-maridoe agora reclama uma parte..Ou do casal de namorados, Luís Ribeiro e Cristina Simões, que ficou conhecido no país inteiro pela longa disputa nos tribunais pelo prémio de 15 milhões, ganho em 2007. Ela dizia que lhe enviou uma chave, a vencedora, por sms. E que, por isso, o prémio era seu. Ele tinha uma versão contraditória: nunca recebeu os números no telemóvel. A chave, diz, é da sua autoria, tal como todas as outras que usaram para jogar em conjunto..Cinco anos depois, a justiça ditou o veredicto: o casal iria levantar o prémio e dividir o dinheiro. Sendo certo que, nesse tempo todo, ganharam, cada um, meio milhão de euros em juros. Ainda assim, Luís reclamou no tribunal da divisão dos juros. Não lhe foi dada razão..Também Amélia recorreu ao tribunal para exigir que o ex-marido lhe devolva 13 milhões do prémio. Nas alegações finais do processo, em novembro passado, o advogado argumentou que a mulher não aguentou as traições, ficou deprimida e chegou a tentar o suicídio..Há um terceiro português bafejado pela sorte, mas, desde 2014, nunca foi conhecida a sua identidade. Sabe-se apenas que se trata de um apostador de Castelo Branco..Fisco mais atento às fortunas.A revelação feita nesta quarta-feira pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, na comissão de Orçamento e Finanças, de que afinal aos 758 contribuintes com elevada capacidade foram acrescentados mais 921 (1679 no total) mostra que, afinal, há mais ricos em Portugal do que se julgava. A Autoridade Tributária chegou a estes números através troca de informação automática..António Mendonça Mendes indicou ainda que Portugal enviou dois milhões de informações a pedido de outros países..Para o fisco, é rico quem tem um património de cinco milhões de euros ou ganha 750 mil euros anuais. A Unidade dos Grandes Contribuintes considera super-ricos os contribuintes com 28 milhões de património ou cinco milhões de rendimento por ano..Significa isto que o fisco tem mais meios para controlar a fraude e a evasão fiscal? Francisco Louçã sublinha que, apesar de o governante não ter sido preciso, "aparentemente essa troca de informações é sobre os depósitos bancários de quem tem mais de 50 mil euros.."Só prova que devia ter sido feito há imenso tempo. Quando foi aprovado houve uma revolta para que não se aplicasse, que era um escândalo. Portugal estava obrigado por um tratado europeu a comunicar os depósitos aos outros países, mas muita gente muito zangada, disseram que era uma devassa. Não queriam que o fisco português soubesse", acrescenta..O economista faz ainda questão de referir a influência dos Panama Papers nesta questão, lembrando que mil contribuintes apareceram nodossiê..Mas se as regras europeias obrigam à declaração dos contribuintes que têm depósitos superiores, o mesmo ainda não acontece com os bancos suíços, embora já haja mais abertura dos helvéticos para prestar informações depois de uma "guerra" com as autoridades norte-americanas. "Há cinco anos recusavam completamente. Em alguns casos judiciais portugueses, as autoridades pedem, mas os suíços levam muito tempo, atrasam tanto quanto podem."