Monique Goyens tem 60 anos e é a diretora-geral da Organização Europeia de Consumidores (OEC), estrutura que junta 43 associações nacionais. Numa pausa para café, de uma das longas reuniões dos 39 peritos, nomeados pela Comissão Europeia, do grupo de alto nível que estudava a resposta a dar às fake news na Europa, Monique abordou o responsável do Facebook, Richard Allan..Allan é o diretor de políticas europeias do Facebook, tendo a responsabilidade de coordenar o lóbi europeu da empresa, mas tem um longo currículo político. Foi deputado dos liberais-democratas e é, desde 2010, um par do reino na Câmara dos Lordes. Trabalha, no Facebook, com o seu companheiro de partido Nick Clegg, que é vice-presidente para os assuntos globais..Monique Goyens é belga e participa, regularmente, nestes grupos de trabalho, que pretendem aproximar - ou conciliar - os interesses das partes sobre políticas europeias. Mas este não era um grupo de alto nível qualquer... "Sempre que havia uma voz discordante, era interrompida de forma muito agressiva pelos serviços da Comissão", recorda Goyens. Tudo parecia estar, à partida, "pré-cozinhado", acusa. Foi por isso que decidiu abordar Allan, na pausa para café..Perguntou-lhe: "Porque têm tanto medo de um inquérito setorial?" A reação foi dura. "Ele ficou bastante nervoso", lembra Goyens. E respondeu: "Se pedirem um inquérito setorial, vamos ter controvérsia." A diretora-geral da OEC garante ter testemunhas desta conversa.."Sim, houve chantagem", responde, direta, numa entrevista realizada na passada segunda-feira. "As plataformas tentaram enfraquecer e atrasar qualquer coisa que tivesse que ver com o seu modelo de negócio.".Vários outros peritos do grupo de alto nível saíram da negociação com a mesma convicção. Um dos participantes que estiveram ao lado de Goyens na exigência de um debate sobre a responsabilização das grandes plataformas, que nos pediu o anonimato, aponta o dedo aos responsáveis da Comissão Europeia: "Foi honestamente o processo mais cansativo e horrendo por que já passei. Em cada processo como este, os organizadores, é claro, desempenham um papel, mas parecia que aqui os organizadores [DG Connect] já estavam a preparar um resultado específico. Parecia que o resultado já estava claro desde o início, que a DG já sabia o que queria. Foi um processo muito pouco gratificante.".O problema das associações da sociedade civil, críticas (além dos consumidores, os Repórteres sem Fronteiras, ou organizações de literacia mediática, por exemplo), era só um: como se pode combater a desinformação sem regular o papel do Google e do Facebook, e sem legislar sobre o modelo de negócio que, na opinião destas entidades, potencia o alcance das fake news?."Era o elefante na sala: ninguém queria perguntar: quem está a ganhar dinheiro com isto? São as plataformas! E os anunciantes. O modelo de negócio é ganhar dinheiro à medida que as pessoas clicam, é por isso que a desinformação se dissemina. E isto nunca foi analisado no contexto do grupo de alto nível. Tentámos, mas parámos", acusa Goyens..Google e Facebook rejeitaram medidas antitrust.Havia um outro problema, acrescenta Goyens. "Se olharmos para as pessoas do grupo de peritos, é também bastante surpreendente que a maioria tenha uma fonte de financiamento comum: o Google.".Isso fez que tivessem fracassado as tentativas de incluir no debate mecanismos de controlo antitrust, regras para a competição (num mercado que funciona em duopólio, tendo o Google e o Facebook mais de 80% das receitas publicitárias online). "Um inquérito setorial podia ser utilizado para analisar o modelo de negócio das empresas, mas, sempre que eu ou outra pessoa tentávamos abordar esta questão, ela era ignorada ou interrompida.".A certa altura, todo o grupo da sociedade civil ameaçou sair. O chefe da unidade que lida, na Comissão, como os media sociais, Paulo Cesarini, prometeu então: "Preciso de falar com a presidente do grupo de alto nível [Madeleine de Cock Buning], para ela ser um pouco mais dura com as plataformas." Mas o problema não estava na presidente do grupo - cuja seriedade é elogiada por todos os peritos com quem falámos. Já sobre Cesarini, as críticas são muitas.."Têm de compreender que a Comissão depende fortemente das plataformas para fazer o trabalho que ela não pode fazer. Se os governos europeus tentarem tomar certas medidas contra a desinformação ou o discurso de ódio, logo serão criticados por atuarem como um Ministério da Verdade. Portanto, as plataformas fazem muito do trabalho que os governos não podem fazer. Por exemplo, as plataformas têm sido muito recetivas ao combate ao discurso do ódio. E a DG Connect sente-se grata por isso, por haver quem faça o trabalho que eles próprios não conseguem fazer.".Para a OEC, "as pessoas que dirigiam o Grupo de Alto Nível estavam sob enorme pressão. Queriam ter algum tipo de resultado como este: a desinformação foi combatida pela Comissão Europeia". Já as associações da sociedade civil queriam outro tipo de resultado. "Queremos que alguém tenha a autoridade para investigar, investigar e investigar. Não digo que venhamos a saber até que ponto eles abusam da sua posição de monopólio, mas seria necessário um inquérito exaustivo para descobrir mais e ver como podemos parar a desinformação no centro: fazendo algo sobre o modelo de negócio das plataformas.".O "código de conduta" baseia-se na autorregulação. Será suficiente?."Não nos opomos à regulação".Monique Goyens acredita que o grupo de peritos apenas adiou a discussão do verdadeiro problema. "Eles estão a ganhar tempo, sabem que a regulamentação virá em algum momento. Querem tê-la o mais tarde possível e que seja a mais fraca possível. A autorregulação é pouco ambiciosa e pouco eficiente. São necessários alguns anos, cerca de cinco, para avaliar o seu progresso e, depois, alguns anos para criar regulamentação. Então eles ganharam uma década. A autorregulação só pode ser levada a sério se o setor a levar a sério, mas não o faz.".No final do relatório, há uma declaração de voto da Organização Europeia de Consumidores. "A OEC vota contra o relatório porque consideramos que a exposição do consumidor à desinformação deve ser abordada principalmente na sua fonte. (...) A avaliação da ligação entre as políticas de receitas publicitárias das plataformas e a divulgação de informações, nomeadamente através de um inquérito setorial, é, na perspetiva da OEC, um elemento crucial para encontrar os mecanismos adequados para combater este fenómeno.".Quando entrevistámos a responsável do Facebook pelo combate à desinformação, Tessa Lyons-Laing, percebemos que a empresa reage com reservas à criação de regras sobre o seu modelo de negócio. "Não nos opomos à regulamentação", começa por garantir Lyons-Laing. Mas com cautela, explica. "Primeiro, tem de ser eficaz. E uma das preocupações com a regulamentação será se esta for excessivamente onerosa de uma forma em que não sejamos capazes de fazer mudanças suficientemente rápidas para nos adaptarmos. A segunda coisa que pensamos é que tem de ser equilibrada. Existe uma tensão entre a liberdade de expressão e alguns dos outros princípios. Assim, qualquer regulamento teria de equilibrar esses diferentes valores, como hoje tentamos fazer. E a terceira coisa que eu acho que é importante lembrar aqui é que a regulamentação tem de proteger a inovação.".Este último ponto é claro para o Facebook. As leis que vierem a ser criadas não podem ser um obstáculo: "Somos uma grande empresa com muitos advogados, muitos gestores de produtos, muitos engenheiros, e o RGPD [regulação da proteção de dados] foi um grande exemplo de como somos capazes de estar à altura dos novos códigos e dos novos regulamentos, e não apenas na UE. Mas temos de assegurar que as empresas que estão a começar ou as que, na Europa ou em qualquer outro lugar do mundo, estavam a tentar envolver-se na tecnologia e construir produtos que são excelentes para as pessoas, que são capazes de satisfazer as expectativas de qualquer quadro regulamentar.".Para o Facebook, a regulação da sua atividade nem sequer pode prometer avanços mais rápidos, porque "leva tempo", explica a responsável. "Por mais que acreditemos que há um lugar para a regulamentação, não pensamos que podemos esperar por ela. A regulamentação, tal como a investigação académica, leva tempo e penso que a transparência publicitária é um grande exemplo de como não esperámos pela regulamentação; tomámos medidas por nossa conta para fazer mais do que o necessário com base na responsabilidade que sentimos para com as pessoas da comunidade que servimos em todo o mundo. E vamos continuar a tomar medidas na transparência publicitária, de notícias, de notícias falsas, de outras formas de abuso relacionadas com as eleições e mais, antes de qualquer regulamento ser aprovado, porque essa é a responsabilidade que sentimos.".Regras só com nova Comissão.Em Bruxelas, onde entrevistamos os comissários europeus com responsabilidade neste tema, Vera Jurova e Julian King, há um consenso sobre a necessidade de regular as grandes plataformas - mas nunca neste final de mandato da equipa de Jean-Claude Juncker.."A minha previsão é que a próxima Comissão venha a propor alguma regulamentação, mas sempre com muito cuidado, uma vez que as pessoas gostam destes produtos e nós não queremos intervir na área da liberdade de expressão", antevê Jurova, a comissária checa que tem a pasta da Justiça e da política de consumidores. "Até agora, existe um amplo consenso entre os Estados membros de que o discurso de ódio é inaceitável, porque pode gerar verdadeira violência. Por isso, receio que, se as plataformas não fizerem o necessário, haverá sanções e começarão a remover todas as páginas suspeitas e eu também não quero isso.".Julian King é o responsável, na Comissão, pela segurança. E é, como nos sublinhou o Google, "o mais franco" dos responsáveis de Bruxelas neste tema. Não estando satisfeito com os resultados da autorregulação, King elogia-a. Começamos por lhe lançar uma provocação. O Parlamento inglês acusou, recentemente, num relatório, o Facebook de agir como um "gangster digital". Concorda? "Não represento o Parlamento britânico.".Quanto ao resto, King espera para ver. "Estamos empenhados, com as plataformas, no código de conduta. Congratulamo-nos com o facto de as plataformas trabalharem connosco. Congratulamo-nos com o facto de terem concordado com o código de conduta. Agora estamos muito interessados em que as plataformas prestem contas do que concordaram fazer. A força disso é que não somos nós do lado de fora a impor requisitos às plataformas. Elas identificaram essas áreas, que eu concordo que são as áreas-chave, e identificaram passos concretos que vão tomar.".As promessas foram, ao que parece, maiores do que os resultados. "Até agora não vimos progressos suficientemente rápidos. Temos um problema em torno de anúncios políticos e com contas e bots falsos. Parece que temos problemas de contagem. E temos de ir mais longe. Por um lado, as plataformas lideradas pelo Facebook disseram que estão a apagar milhões e milhões e milhões de novas contas. Por outro lado, pelos seus próprios números, existe ainda um stock de contas que não parece estar a descer. Pelos seus próprios números, parece ter subido. Também pelos seus números e algumas análises externas, parece que algumas dessas contas estão ativas com conteúdos políticos."."E depois temos uma terceira categoria de problemas, que é a da transparência", nota o comissário. "As diferentes plataformas lideradas pelo Facebook estão a desenvolver novas ferramentas para permitir a análise do que se passa. Mas está a ficar mais difícil um escrutínio externo independente. Embora nos congratulemos com o fato de estarem a criar ferramentas que geram mais informações sobre as plataformas, não queremos que isso seja feito à custa do escrutínio independente", sublinha Julian King..A poucas semanas das eleições europeias, que ditarão, também, o futuro deste debate sobre as regras a aplicar aos gigantes online, a União Europeia ainda não sabe como combater a desinformação..Com Elisa Simantke, Harald Schumann, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Leila Miñano, Nico Schmidt, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore, Wojciech Ciesla e Investico (Daphné Dupont-Nivet).Investigate Europe é um projeto iniciado em setembro de 2016 que junta jornalistas de oito países europeus..Este trabalho foi financiado em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian. Investigate Europe tem o apoio das fundações Cariplo, Milão, Stiftung Hübner und Kennedy, Kassel, Fritt Ord, Oslo, Rudolf Augstein-Stiftung, Hamburgo, GLS, Alemanha, e Open Society Initiative for Europe, Barcelona.