Como o caso Tancos abriu uma crise no Ministério Público e na Justiça

Um parecer sobre a intervenção da hierarquia no MP foi definido como doutrina por Lucília Gago e está a provocar fortes críticas de procuradores. Tudo começou com uma ordem no processo das armas de Tancos.
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Foi no inquérito ao caso de Tancos que tudo começou. A polémica em torno da diretiva da Procuradora-Geral da República em que a doutrina passa a ser que a hierarquia pode intervir nos processos-crime, "modificando ou revogando decisões anteriores" dos procuradores, deriva de uma ordem hierárquica no processo do roubo de armas em Tancos e já se transformou num debate sobre a autonomia do Ministério Público (MP) e a intervenção do poder político, O líder sindical dos magistrados do MP diz que é "o maior ataque à autonomia dos magistrados alguma vez efetuado no regime democrático". Lucília Gago diz que não é verdade, mas os partidos políticos querem ouvir as suas explicações.

O início foi assim: Albano Morais Pinto, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), deu instruções aos três procuradores que dirigiam a investigação de Tancos em que o proibia a inquirição, por escrito, de titulares de cargos políticos, o presidente da República e o primeiro-ministro. Para justificar a ordem hierárquica, Morais Pinto invocou a "dignidade" e a "alta função" dos cargos de Marcelo e Costa para impedir a sua inquirição.

No despacho que fez, segundo foi noticiado pela revista Sábado, Morais Pinto defendeu que a competência para realizar inquirições ao presidente da República e ao primeiro-ministro pertence aos serviços do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça. E ordenou que fossem eliminadas dos autos as 48 perguntas que os procuradores Vítor Magalhães, Cláudia Porto e João Valente pretendiam ver respondidas, enquanto testemunhas, por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Os três procuradores exigiram que o diretor do DCIAP colocasse a ordem por escrito, o que resultou no referido despacho de 30 páginas.

Esta ação de Morais Pinto foi entendida em alguns setores do MP como uma interferência no trabalho dos procuradores. Foi na sequência das dúvidas criadas que Lucília Gago decidiu pedir o parecer ao Conselho Consultivo. E fê-lo após sugestão, em outubro passado, do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), onde o tema motivou divergências. O CSMP é formado por 18 membros, entre procuradores, membros eleitos pela Assembleia da República e membros designados pela ministra da Justiça e é presidido pela procuradora-geral da República

Nesta altura já soava o alarme no Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), com advertências públicas: "Sem autonomia interna, a autonomia externa do Ministério Público corre o risco de se transformar numa fraude para o povo em nome do qual a justiça é administrada." O SMMP apelou então à procuradora-geral da República e ao CSMP para que "determinem a proibição e correspondente punição de práticas ilegais que são e serão sempre insustentáveis".

Ordens não ficam nos processos

Após o pedido de Lucília Gago, o parecer do Conselho Consultivo da PGR foi conhecido no dia 4 de fevereiro, com a sua divulgação no site da PGR. Defende que a hierarquia do MP pode intervir nos processos-crime, "modificando ou revogando decisões anteriores".

O parecer, cuja doutrina a procuradora-geral da República determinou que seja "seguida e sustentada pelo MP", refere que as normas relativas à intervenção hierárquica em processos-crime "conferem à hierarquia competência para a prática de atos processuais penais, modificando ou revogando decisões anteriores". Na prática, significa que, por exemplo, a PGR pode dar uma ordem ao diretor do DCIAP para arquivar determinado processo.

Além da intervenção hierárquica, outra polémica conclusão do parecer é que a ordem não tem que ficar registada no processo. "A emissão de uma diretiva, de uma ordem ou de uma instrução, ainda que dirigidas a um determinado processo concreto, esgotam-se no interior da relação de subordinação hierárquica e não constituem um ato processual penal, não devendo constar do processo", lê-se no parecer. Com isto, os arguidos, assistentes e a opinião pública ficam sem saber o motivo de determinado arquivamento, ou não constituição de arguido, por exemplo.

MP "morreu como magistratura"

A primeira reação violenta veio de Rui Cardoso. O ex-presidente do SMMP e professor do Centro de Estudos Judiciários, escreveu no Facebook que 4 de fevereiro (data do parecer) "foi o dia mais negro da história democrática do Ministério Público português: morreu como magistratura". O entendimento do procurador é que "todos os agentes do MP (que não mais podem ser chamados de magistrados) são apenas uma longa mão da vontade do/a Procurador/a-Geral da República".

E prosseguiu: "Este/a, nomeado/a pelo Presidente da República por proposta do Governo, passa a ser diretamente responsável por tudo o que sucede no Ministério Público: pelo que ordena, pelo que devia ter ordenado, pelo que permite, pelo que não impede. É sua a única vontade relevante. Parte substancial da legislação processual penal que respeita ao Ministério Público ficou sem qualquer sentido. O Ministério Público ficou sem condições normativas para dirigir o inquérito."

Em simultâneo, o SMMP foi célere a reagir, anunciando depois que iria impugnar judicialmente a diretiva de Lucília Gago para que a doutrina do parecer seja seguida pelo MP, recorrendo ao Supremo Tribunal Administrativo. O seu presidente António Ventinhas considerou a decisão da PGR "gravíssima", por entender que "coloca em causa o Estatuto do Ministério Público ao admitir que os titulares dos processos não tenham autonomia e que sejam meras marionetas da hierarquia. E que passe a existir uma espécie de sombra sobre as decisões do Ministério Público no processo"

"De acordo com o conceito de hierarquia da diretiva, o subalterno tem de cumprir todas as ordens o que significa que o PGR pode dar ordens imediatas ao diretor do DCIAP de como se conduz um processo e esse dar ordens aos procuradores, sendo certo que estas ordens não ficam visíveis no processo", sustentou.

Além disso, o SMMP defende que "todas as partes do processo têm o direito de escrutinar as decisões que o Ministério Público toma no processo e vão deixar de o poder fazer", reagindo ao ponto das ordens hierárquicas ficarem fora dos autos dos processos criminais.

Sobre a forma como foi dado a conhecer o parecer, que passou a ser diretiva, e as suas implicações, Ventinhas classificou-a como "uma trapalhada do princípio ao fim". "O parecer foi divulgado sem data, sem as assinaturas dos elementos que o votaram, sem a identificação do relator. É um documento truncado. Parece que a política de ocultação já começou", criticou. Por tudo, o SMMP vai contestar a decisão junto do Supremo Tribunal Administrativo.

O bastonário da Ordem dos Advogados, Menezes Leitão, ouvido pela TSF, considera precipitada e desadequada a diretiva da PGR e diz ser "difícil de aceitar que possa haver uma intervenção da hierarquia fora do código de processo penal, e sendo feita apenas de forma verbal".

"Não há razões para inquietações"

Mas nem todos no MP partilham desta preocupação. Em declarações ao Observador, o procurador-geral adjunto jubilado Euclides Dâmaso disse que não há "razões para inquietudes nem para dramatizações, porque nada se alterou na relação de equilíbrio" entre a hierarquia e os subordinados.

O ex-procurador-geral distrital de Coimbra é uma figura respeitada na magistratura diz que a isenção não são monopólio dos procuradores mas também da sua hierarquia. "Esta conformação do MP é a que melhor serve os interesses da sociedade, da Justiça e da democracia. E é altura de dizer que não há, nos últimos 45 anos, motivos para se por em causa a probidade e a isenção dos membros da hierarquia do MP, que são magistrados de mérito com provas dadas ao longo de muitos anos de serviço. O monopólio desses valores não pertence às bases", afirmou.

PGR diz que não há poderes acrescidos

A polémica em torno do parecer levou a PGR a vir a público, pela forma de um comunicado, defender a sua diretiva interna. "O parecer não atribui ao Procurador-Geral da República poderes acrescidos de intervenção direta em processos, mantendo os poderes hierárquicos que sempre lhe foram conferidos intocáveis", esclarece a PGR, na nota.

"As relações hierárquicas entre os magistrados do Ministério Público mantêm-se nos termos em que foram concebidas e consolidadas nas últimas décadas", sublinha no esclarecimento, insistindo que os magistrados do MP "têm o dever de recusar ordens ilegais e a faculdade de recusar tal cumprimento em casos de grave violação da sua consciência jurídica".

A PGR diz ainda sobre as ordens não constarem dos processos: "O expediente produzido no estrito domínio das relações hierárquicas, que não deva constar do concreto processo, está sujeito à fiscalização, designadamente no âmbito de inspeções, aos magistrados ou aos sérvios." Esclarece ainda que o magistrado do MP "pode referir que está a cumprir uma ordem, mencionando, se tal se justificar, a existência de um suporte escrito extraprocessual de tais comandos hierárquicos".

Mais tardem, em declarações a jornalistas reforçou estas ideias. "Quero deixar claro que, em termos de relação hierárquica, nada se alterou por força quer do parecer do Conselho Consultivo, quer da diretiva que a propósito dele emiti. Essa relação hierárquica mantém-se como sempre aconteceu no passado, ao longo de décadas, aliás", afirmou, em Braga.

Marcelo espera pelos tribunais e partidos criticam

Sendo a PGR nomeada pelo poder político, e com o caso Tancos como ponto ignição, o parecer está já a ser alvo de críticas e pedidos de esclarecimento dos partidos representados na Assembleia da República.

Contido, o Presidente da República recusou pronunciar-se. "O Presidente da República não deve dizer: a minha interpretação é uma das duas que estão em debate. Questão completamente diferente é esta questão ter nascido a propósito do caso concreto em que o diretor do DCIAP entendeu que a iniciativa de Procuradores para ouvir o PR não fazia sentido", começou por referir Marcelo Rebelo do Sousa em declarações aos jornalistas no Porto.

Marcelo Rebelo de Sousa explicou não poder "imiscuir-se" no caso, muito menos mostrando qual a interpretação que faz da diretiva que está origem da controvérsia. Observou que o Sindicato dos Magistrados do MP "disse que ia recorrer aos tribunais para que tribunais dissessem qual a leitura" mais adequada. "O que o presidente diz é que o MP é autónomo e os tribunais são independentes", disse Marcelo.

Entre os partidos, o PCP diz estar preocupado e afirma que nunca se foi "tão longe" na limitação da autonomia do Ministério Público, sustentando que a diretiva sobre a hierarquia do MP carece de "cobertura legal", sendo de "duvidosa constitucionalidade".

Pelo PSD, o vice-presidente da bancada parlamentar Carlos Peixoto defendeu que a diretiva contém orientações que "ofendem a legalidade e até a própria Constituição". "A senhora procuradora [geral da República] pode dar as suas explicações, pode eventualmente até mudar de posição, deixando cair uma diretiva que por escrito mandou transmitir a todos os procuradores, orientações que nos parecem que ofendem a legalidade e até a própria Constituição da República Portuguesa", afirmou o deputado à agência Lusa.

Apesar de o PSD não prever dar entrada de nenhuma pedido da audição ou iniciativa legislativa, o vice-presidente da bancada adiantou que os sociais-democratas vão votar favoravelmente os requerimentos que sejam apresentados por outros partidos,

Isso já foi anunciado pela Iniciativa Liberal, partido que quer ouvir com "urgência" Lucília Gago, no parlamento, por considerar que a nova diretiva pode pôr em causa "investigações criminais a políticos" e "transparência" dos processos. Também o Chega anunciou que vai propor a audição parlamentar da ministra da Justiça e da Procuradora-Geral da República para prestarem esclarecimentos. O PAN mostrou-se preocupado com a diretiva da hierarquia do MP, alegando que podem estar "princípios constitucionais em causa" e admitiu requerer esclarecimentos à ministra da Justiça e à procuradora-geral da República.

O BE pediu"transparência" para evitar "apropriações indevidas" na ação do MP, José Manuel Pureza considerou "imperativo" um princípio de transparência, porque "só com registo dos processos é que há garantia de fiscalização, que há responsabilização de quem emite essa ordem, que há defesa de quem a tem que cumprir e portanto há garantia do MP como um todo". Os bloquistas não colocam, para já, a hipótese de avançar com uma iniciativa parlamentar por considerarem que "o debate é ainda nesta fase um debate que precisa de ser amadurecido no interior do MP".

O CDS-PP defendeu que a diretiva coloca em causa a autonomia, com a gravidade acrescida de não serem registadas instruções ou ordens que sejam dadas. O deputado Telmo Correia sublinhou que o MP é autónomo nas suas funções, quer internamente quer externamente, e que esta instrução se assume "muito claramente contra esse principio de autonomia". O CDS considerou, contudo, que as mais recentes declarações da PGR são um "recuo" na diretiva apresentada, e não sendo o caso, a reação do partido passaria de preocupação a "indignação com o conteúdo desta diretiva".

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