Domingos Lopes decide abandonar o PCP por se sentir traído enquanto candidato autárquico. Aconteceu em 2009 e nunca mais a militância foi igual. Para trás ficam décadas de trabalho com Álvaro Cunhal no dia-a-dia dos governos provisórios no pós-25 de Abril, e a crença na mudança com Carlos Carvalhas, que ocupa o cargo nos tempos conturbados da perestroika. Olha para Jerónimo de Sousa como um dirigente que pode ser obrigado a ficar como secretário-geral devido às divisões internas no partido sobre o rumo do PCP..Após 40 anos de militância no Partido Comunista Português (PCP), Domingos Lopes bateu com a porta e abandonou o partido. A carta em que disse adeus é de 2009 e uma década depois publica as suas Memórias Escolhidas, em que relata o seu dia-a-dia durante anos com Álvaro Cunhal e muitas outras histórias partidárias..São 200 páginas apostadas, principalmente, em mostrar que o mítico secretário-geral e os seus camaradas de confiança empurraram o PCP para um gueto político que tem vindo a confirmar-se a cada ato eleitoral com cada vez menos força..Não é o primeiro livro de um ex-militante do PCP que teve altos cargos na estrutura e foi membro do Comité Central, mas o registo alegadamente cordial de Domingos Lopes torna-se mais demolidor do que outras páginas inflamadas já publicadas, daí que se possa dizer que é uma primeira grande machadada no mito de Álvaro Cunhal infalível..O momento mais constrangedor do livro é o relato da reação de vários comunistas presentes numa sessão de esclarecimento do PCP quando sabem da morte de Sá Carneiro: "Como uma mola levantou-se a assistência de punho erguido [e gritaram]: 'Assim se vê a força do PC!'." Questiona-se se aconteceu mesmo? "Sim, faz parte da psicologia de massas num momento em que a situação política estava muito extremada, porque se vivia uma luta entre dois candidatos presidenciais, Soares Carneiro e Ramalho Eanes, ao saberem que o avião de Sá Carneiro tinha caído. É de um primarismo quase pavloviano, mas num plano social foi esse lado que me ficou - além de que essa morte nem sequer resolvia o problema", explica ao justificar a inclusão desta memória no livro..Há outro episódio com força, desta vez relacionado com o principal protagonista evocado nestas Memórias Escolhidas, aquele em que Domingos Lopes recorda que Álvaro Cunhal tinha escrito apenas o seu nome no cartão-de-visita e nenhum cargo. Porque estranhou? "Creio que achava que não precisava de acrescentar nada. Num primeiro momento pensei que era modéstia, mas depois mudei de opinião: o que significaria era que toda a gente saberia quem era e não precisava de dizer que era o secretário-geral.".Para Domingos Lopes, esta atitude não corresponderia a um sentimento de posse do PCP por parte de Álvaro Cunhal: "Não diria isso, um sentido de posse, mas como a sua vida era uma tão grande confusão entre ele e o partido podia até ser inconsciente. Não acho que quisesse ser o dono, mas vejo-o como alguém em que existe uma relação com o partido de tal forma que considerava que desnecessário dizer que era secretário-geral. Não punha no cartão porque não precisava, toda a gente o sabia e, provavelmente, não seria preciso dizer mais nada.".Para Domingos Lopes, escreve no livro, Cunhal era feito de vários homens: "Essa é uma frase complicada, mas se todos nós somos feitos de várias pessoas, nele isso era absolutamente claro. Havia o homem capaz de estar com os Mellos, com a Oriana Fallaci, com Soares, no Conselho de Ministros, e ao mesmo tempo estar com os trabalhadores da reforma agrária." Memórias Escolhidas surge como um ajuste de contas com o partido onde militou a maior parte da sua vida? "Não tenho nenhum ajuste de contas a fazer. Convidaram-me a entrar, fiz tudo pela minha consciência e não me arrependo de nada. Apenas me pareceu que um homem que saiu do PCP deveria dar esclarecimentos além daquilo que escrevi na carta de abandono do PCP", responde..Entre as razões deste livro, segundo o autor, está a idade: "Vai-se para velho e começa a pensar-se que vivemos coisas que talvez valham a pena registar e que os outros ainda não sabem." É o caso, entre vários, da intensa participação nas lutas estudantis em Coimbra em 1969: "Achei importante ir buscar alguns episódios que são de quase aventura de alguém que pertence a uma geração que transportou a luta contra a ditadura e pela liberdade para depois do 25 de Abril e viveu da forma tão intensa como foi aquela que eu vivi no amor e desamor." Confirma-se: amor e desamor partidário? "Sim, é o que está em causa.".Estas Memórias não referem especificamente mais do que meia dúzia de camaradas do autor, no entanto Álvaro Cunhal estará sempre presente. A razão é simples: "Álvaro Cunhal é a justificação para ter escrito o livro e poder falar dele. Durante 40 anos militei no PCP e ele era um líder que não tinha acabado de chegar ao partido, antes, de alguma forma, a sua alma. Tendo em conta as responsabilidades que tive durante esses anos e o que conheci de Cunhal era quase inevitável não falar dele quando falo do PCP e do que considero que seja errado ou daquilo que se considerem ser as virtudes do partido. Ou seja, é impossível não falar de Cunhal naquilo que o PCP fez depois do 25 de Abril e no que analiso como sendo erros dele.".Entre as principais críticas de Domingos Lopes está a do centralismo democrático. Alerta: "Encarado como o PCP o encara, sem dúvida." Para o autor, pouco a pouco as decisões eram tomadas por um grupo de militantes mais idosos, uma espécie de donos do partido, que o orientaram de uma forma fatal. Garante que "Cunhal aceitava discutir ideias contrárias, mas nem precisava de impor as suas. Dizia aos outros com quem sempre trabalhou que não pensava assim e era meio caminho andado para isolar um camarada". Ou seja: "O que fez Cunhal? Consciente ou inconscientemente, isso não interessa, rodeou-se de pessoas que o aceitavam como o mais capaz e que as suas propostas eram por norma as mais adequadas. Bastava falar para ter o seu apoio. É isso que precisa um líder destacado, que ponham em prática o que ele pensa. Essas pessoas são as que estão mais predispostas a aceitar aquilo que o líder diz, e o que aconteceu foi que durante 30 anos nesta situação rodeou-se de pessoas que não colocavam problemas. Isso explica a situação atual do partido. Ele passava horas, se fosse preciso, a falar com quem não comungava das suas ideias, mas depois dizia o que se passava a alguns membros da comissão política e estes passavam a palavra.".A explicação para esta situação também tem que ver com o passado. Diz: "O PCP é um partido que em março/abril de 1974 não tem assim tantos milhares de militantes - talvez três ou quatro mil - mas com uma influência muito além deste número. E são os que entram que trazem uma força extraordinária ao PCP, só que à medida que o partido vai travando batalhas, e sobretudo perde no 25 de novembro de 1975, é que se começa a perceber e a sentir que as coisas começam a ser um pouco diferentes na estrutura do partido e na forma de o encarar. A gente que vem da clandestinidade, com um papel muito importante, vê o modelo de partido de uma forma muito parecida com a do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e os dos outros países socialistas. Essa não é uma situação que se revele imediatamente, antes vai acontecendo à medida que existem crises, e é dentro dessa lógica de quem está no partido e de que o pode mudar que vê que não o consegue fazer.".Este impasse resiste à saída de Álvaro Cunhal do cargo de secretário-geral e à sua substituição por Carlos Carvalhas. Segundo Domingos Lopes, "vai-se tentando perceber se é ou não possível dentro do partido mudar o seu funcionamento e a orientação, não para deixar de ser comunista mas no sentido de poder pulsar e agir de outra maneira". Para o autor, esta não é uma situação "fácil de explicar e resulta de uma vivência de duas ou três dezenas de anos em que uma luta interna com os camaradas que queriam democratizar o partido no sentido de que os militantes fossem mais ouvidos". Dá como exemplo a possibilidade de "poder haver um coordenador eleito em vez de um funcionário nomeado pela direção do partido. Essa impossibilidade vai criando uma luta interna que gasta muitos quadros, até que se chega a um ponto em que não é mesmo possível continuar lá dentro. E quando o PCP não absorve esses milhares de quadros, expele-os"..A chegada de Carlos Carvalhas torna-se um período de esperança para muitos militantes, diz Domingos Lopes. Contudo, não será assim: "É um período que coincide com o auge da perestroika, em que o próprio PCUS considera que não é vanguarda e assume a democratização do partido e da União Soviética. Isto cria nos outros partidos comunistas movimentos internos fortes e dá-se o Congresso de Loures em que Álvaro Cunhal reconhece os erros. Há então um programa no PCP que contempla os valores democráticos, os direitos individuais e coletivos, ou seja, todo um terreno em que se pode militar com satisfação. Só que a derrota da perestroika deu força ao setor mais recalcitrante, que achava que podia estar em risco com a democratização do PCP. Se continuar assim, é inevitável que fique um partido sem a influência social e eleitoral que já teve e manter-se num eleitorado muito envelhecido.".Apesar de não estar no PCP desde 2009, devido a sentir-se traído enquanto candidato autárquico, Domingos Lopes continua a acompanhar a vida partidária. Concordou com o PCP na geringonça: "Foi uma boa solução para o PCP porque, com as votações que tem, não pode ser governo. Ao ser chamado, é capaz de condicionar as políticas dos partidos que podem constituir uma maioria e há a possibilidade de algumas das suas propostas serem tidas em conta. Não estou a dizer que tenha sido a melhor solução, mas é o máximo que o PCP pode fazer para condicionar o governo do PS." No entanto, quanto às divergências entre o PCP e o Bloco de Esquerda, não percebe porque "estão de costas voltadas quando uma grande parte das propostas sociais e económicas são muito parecidas". E assegura, esta união à esquerda teria tido o apoio de Álvaro Cunhal: "Não tenho a menor dúvida de que sim.".Quanto à sucessão do atual secretário-geral, Domingos Lopes hesita: "O Jerónimo de Sousa já disse que está aí para as curvas; provavelmente existirá um debate no partido que poderá ser muito crispado e ele terá de aguentar mais quatro anos." Acrescenta: "Não sei qual é a situação interna, mas preocupo-me com o futuro do PCP." Este livro é bom para o PCP? "Para o PCP que eu defendo acho que é bom", justifica..Memórias Escolhidas é o título do livro de Domingos Lopes que conta vários episódios enquanto militante e dirigente do PCP. Editado pela Guerra & Paz, com 198 páginas.