Como as constipações da infância podem influenciar a resposta ao vírus da covid-19

Pecado antigénico original. Cientistas começam a ter evidências crescentes de que a exposição anterior a outros coronavírus influencia a defesa montada pelo organismo face à infeção por SARS-CoV-2. Mas, isso é bom ou mau?
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Desde o início da pandemia que a hipótese de uma imunidade cruzada contra a covid-19 tem sido um dos temas mais debatidos em torno da resposta à doença. Poderão efetivamente as nossas constipações passadas, provocadas por outros coronavírus, ajudar o organismo a responder ao SARS-CoV-2, da mesma forma como acontece com algumas pessoas em relação ao vírus da gripe? O fenómeno, também conhecido por "pecado antigénico original", voltou recentemente a merecer a atenção da revista científica Nature, que aponta evidências crescentes de uma possível resposta imunitária cruzada face à covid-19. Mas quais os reais efeitos, e se isso facilita ou prejudica o combate a este vírus, são questões ainda em aberto.

"O que acontece é que o SARS-CoV-2 não é o único coronavírus que infetou os humanos. Como sabemos, fomos já confrontados com outros, como os que provocam as constipações comuns, que serviram até de base para o desenvolvimento das atuais vacinas contra a covid-19. E, perante essas constipações comuns na infância, o nosso organismo desencadeou uma resposta imunitária. Acontece que entre alguns coronavírus há epítopos [pequenas porções do antigénio] comuns que podem permitir ao sistema imunitário reconhecer esses epítopos e fazer o sistema imunitário desenvolver anticorpos", explica Margarida Saraiva, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Imunologia.

Há vários exemplos desse fenómeno e começam a surgir cada vez mais evidências de que a resposta imunitária ao SARS-CoV-2 também pode ser influenciada pela exposição a anteriores coronavírus. De acordo com a revista Nature, um grupo de investigação liderado por Scott Hensley, microbiologista da Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, descobriu que amostras de soro sanguíneo de algumas pessoas recolhidas antes da pandemia continham anticorpos contra um coronavírus comum chamado OC43 que poderiam ligar-se à proteína spike do SARS-CoV- 2.

Usando amostras recolhidas antes e depois da infeção por SARS-CoV-2, o grupo de Hensley conseguiu demonstrar que infeção pelo novo coronavírus fez aumentar a produção de anticorpos de ligação ao OC43. O estudo descobriu que esses anticorpos se ligavam à subunidade S2 da proteína spike - que tem uma estrutura semelhante à do OC43. No entanto, os anticorpos não se ligaram à região S1 da proteína de espícula e foram incapazes de impedir a entrada do vírus da covid-19 nas células.

Na complexidade do nosso sistema imunitário, quase nada é tão simples quanto possa parecer. E a questão, aqui chegados, desagua naquilo a que, em 1960, o epidemiologista norte-americano Thomas Francis Jr chamou de "pecado antigénico original", também conhecido por impressão antigénica ou efeito de Hoskins. Essa teoria defende que a primeira gripe ou a primeira constipação marca para sempre a resposta imunitária a futuras infeções por essas famílias de vírus, condicionando assim as defesas desenvolvidas. O que, se à primeira vista pode ser benéfico, por ativar uma memória celular contra a infeção, também pode acabar por ser prejudicial, se a resposta previamente condicionada pela memória celular impedir as células de montarem uma resposta mais adequada ao novo patógeno.

"Não sabemos ainda se essa imunidade cruzada pode ajudar a controlar a infeção ou, pelo contrário, prejudicar. É prematuro tirar conclusões", refere Margarida Saraiva. A investigadora do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde i3S, do Porto, explica que "há produção de anticorpos, influenciada pela memória celular, mas esses anticorpos podem não ser neutralizantes". "As células B de memória, ao reconhecerem aqueles epítopos comuns a coronavírus anteriores, vão levar à produção de anticorpos que, se o vírus for suficientemente semelhante ao original, podem ajudar a controlá-lo mais rapidamente. Mas, se não for esse o caso, também podem com isso impedir as células B naïves [sem memória] de montar uma resposta mais específica para o novo patógeno", pormenoriza.

De qualquer das formas, salienta Margarida Saraiva, mesmo que a resposta acionada pela memória celular não impeça o SARS-CoV-2 de invadir as células, isso não significa que não vá "ativar outros mecanismos de proteção que levam a matar as células infetadas". Para já, defende, "isso parece ser mais benéfico do que prejudicial".

Uma questão importante tem a ver com a efetividade das vacinas. Até que ponto esse pecado antigénico original pode dificultar a ação vacinal e, mais ainda, como podem as respostas imunitárias moldadas pelas primeiras vacinas vir a comprometer futuras vacinas contra outras mutações do vírus, como agora acontece com a variante Ómicron? Ainda esta semana, um estudo de investigadores do Imperial College London, citado pela Sky News, revelava que o primeiro contacto com o SARS-CoV-2 molda a resposta do sistema imunitário a infeções posteriores com outras variantes.

A imunologista Margarida Saraiva afasta para já essa preocupação. "A eficácia da vacina tem sido tão elevada que ultrapassa essa possível resistência", diz, apontando para os dados "esclarecedores" sobre o impacto positivo da vacinação na redução do número de infeções graves e de óbitos.

À revista Nature, o microbiologista Scott Hensley relata que, num estudo realizado pelo seu grupo na Universidade da Pensilvânia, as pessoas não produziram tantos anticorpos de OC43 após receberem uma vacina de RNA mensageiro quanto o fazem quando infetadas com o próprio SARS-CoV-2 . E isso pode dever-se ao facto de "as vacinas de mRNA estabelecerem uma resposta imune tão eficiente que podem contornar qualquer efeito de impressão antigénica".

Craig Thompson, virologista da Universidade de Oxford, considera que no futuro, se necessário atualizar vacinas para variantes mais ameaçadoras, essa impressão antigénica também poderia ser contornada "removendo os epítopos comuns" que ativam a memória celular. Margarida Saraiva também não vê razão para alarme. "Isso não está a acontecer com as vacinas contra a covid-19 e, se necessário, as vacinas podem adaptar-se no futuro, como fazemos todos os anos com a vacina da gripe".

rui.frias@dn.pt

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