Comissão Ursula: rica em sonhos, pobre em euros

Nesta quarta-feira a nova Comissão Europeia dará início a planos que podem transformar a UE e, consequentemente, o nosso país. Importa conhecer a agenda para os próximos anos.
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Se tudo correr como previsto, Ursula von der Leyen (VDL) e o seu colégio de comissários serão hoje eleitos pelo Parlamento Europeu para liderar o executivo da União Europeia (UE) durante os próximos cinco anos. Depois de alguns percalços durante as audições dos comissários, com três chumbos e várias segundas chamadas, há finalmente 27 europeus prontos a tomar posse - um por cada Estado membro (EM), à exceção do Reino Unido, já com um pé fora. Há cinco anos, Juncker apresentou uma agenda de dez prioridades para a sua comissão. Hoje, VDL dará início a planos tão ou mais ambiciosos que podem transformar a UE e, consequentemente, o nosso país. Importa conhecer a agenda que marcará os próximos cinco anos. E já que a nova comissão afirma querer ser geopolítica, comecemos por aí.

Ter voz no mundo

A UE tem, a nível mundial, o maior mercado, o segundo maior investimento em defesa (só atrás dos EUA), o maior corpo diplomático e o maior investimento em ajuda ao desenvolvimento. Ainda assim, tem dificuldade em fazer-se ouvir e em liderar no palco global. Paradoxal?

Nem por isso. A UE tem pouca margem para, em nome próprio, desenvolver uma estratégia global, sobretudo num mundo cada vez mais bipolar, com os dois gigantes - EUA e China - em conflito. Falta-lhe capacidade na segurança e defesa, no sistema financeiro internacional e no digital. A palavra-chave para uma comissão que quer ser geopolítica é "soberania".

Na defesa, o desafio é preparar um possível cenário pós-NATO, a aliança que tem garantido a segurança europeia desde a Guerra Fria e que Macron disse recentemente estar em "morte cerebral". Perante a perda do apoio férreo dos EUA e a aproximação da Turquia à Rússia, surgem cada vez mais vozes que pedem uma defesa europeia, que pode até não excluir um Reino Unido pós-Brexit. Aquilo que começou por ser iniciativas de partilha de informação e capacidades e compras coletivas tem vindo a ganhar características mais militarizadas, e fala-se na possível criação de um Conselho de Segurança Europeu. Macron tem sido, de forma cada vez mais explícita, um defensor de uma indústria de armamento europeia, e a criação de uma direção-geral para a defesa e o espaço por parte de VDL pode já ter sido uma primeira resposta.

Na política externa, será interessante ver como Josep Borrell, alto representante para a Política Externa, lidará com as divergências entre EM e a capacidade que terá para ditar e influenciar as posições dos EM. Recentemente, a UE tem falhado tomadas de posição importantes por incapacidade de coordenação das posições dos EM. Mogherini, alta representante na era Juncker, foi pouco mais do que mera secretária dos EM. Borrell terá de ser líder, ao mesmo tempo que recupera a confiança mútua Comissão-Conselho.

O facto de a UE ter como principais instrumentos de política externa questões económicas torna-a extremamente vulnerável num mundo onde a economia recuperou uma dimensão política. Os EUA mantêm a Organização Mundial do Comércio paralisada por razões essencialmente políticas, e usam a segurança nacional para distorcer as regras globais do livre comércio. Donald Trump tem usado estas cartadas para manter a UE sempre sob constante pressão, como se viu ainda na semana passada, após novas ameaças de sanções. A capacitação do lado "político" da política comercial será um desafio que a UE terá de superar.

Seria impossível concluir a conversa sobre a UE como potência global sem discutir o alargamento. Macron e alguns outros bloquearam o início da entrada de Macedónia do Norte e Albânia, dizendo que será necessário reformar o processo. Embora haja ainda sensibilidades feridas devido aos velozes alargamentos do início do século, é importante não esquecer que os países da vizinhança que a UE não for capaz de acolher cairão necessariamente noutras esferas de influência - China, Rússia, Turquia. Estará na agenda do dia.

Europa digital

É uma das áreas em que a UE terá de continuar a apostar, já que é também uma das áreas onde há mais para fazer. O ecossistema de inovação digital europeu é reconhecidamente fraco, sobretudo quando comparado com os gigantes EUA e China. A inteligência artificial não faz parte das competências das grandes empresas europeias; o 5G vem aí e a UE não tem tecnologia própria que lhe permita defender-se de vulnerabilidades externas.

Os planos da Comissão VDL incluem inovação, uma política industrial que estimule a criação de gigantes com escala para competir com EUA e China, e regulação do uso de dados e algoritmos, bem como manutenção da política de concorrência que tanto sucesso teve na era Juncker. Vestager será a líder do braço digital desta comissão, com um todo-poderoso ajudante Thierry Breton. Juntos controlam as duas direções-gerais mais importantes para regular este tema: DG COMP (concorrência) e DG CONNECT (digital).

O projeto mais importante, segundo as cartas de missão e as audições parlamentares, será a estratégia europeia para a inteligência artificial, a apresentar nos primeiros cem dias de mandato. Essa deve ser uma estratégia que afirma os valores europeus no uso da tecnologia: justiça social, inclusão, respeito pelas liberdades e privacidade dos utilizadores e finalidade eticamente aceitável. O estímulo à digitalização nos EM, sobretudo das suas administrações públicas e dos seus tecidos empresariais, será uma agenda interessante para esta comissão. Grandes iniciativas europeias de partilha de dados em campos como a saúde também serão prováveis, embora levantem questões importantes de vulnerabilidade. Tudo isto, é claro, sem esquecer a agenda do desenvolvimento sustentável e o combate à crise climática.

Pacto "esverdeado" para a Europa

Uma das grandes preocupações de VDL é a resposta à crise climática. No seu plano de ação prometeu apresentar um "Pacto Verde para a Europa" nos primeiros cem dias de mandato, um plano coordenado por Frans Timmermans que deve ser detalhado e do qual já se conhecem alguns traços muito gerais.

Em termos mais simbólicos, o plano inclui aumentar a ambição da redução de emissões para 2030, de 40% para 55%, e declarar o objetivo da UE em ser o primeiro continente neutro em emissões de carbono em 2050. Apesar de ser meramente simbólico, não deixa de ser importante para dar força às políticas da UE, e por isso mesmo Polónia, Hungria e República Checa opõem-se a esta medida. A resistência encontrada no Leste à agenda climática, que se explica por serem regiões com dependência energética e económica de fontes poluentes, será um dos principais obstáculos de VDL em todo este processo. Para tentar responder a isso, a nova comissão terá um instrumento que se centra na "transição justa". Nas mãos da comissária portuguesa Elisa Ferreira, o fundo para a transição justa servirá para compensar as regiões mais impactadas negativamente com a alteração de paradigma energético.

A política fiscal tem aqui um papel central. O mercado de emissões já em funcionamento na UE, o ETS, tem apresentado resultados interessantes desde 2017, quando o preço das emissões finalmente começou a subir. Alargar este mercado a novas áreas e indústrias pode ser uma medida interessante para a comissão VDL. Outra das medidas, também com um enorme impacto mas com uma implementação difícil, é a tributação alfandegária do carbono. De forma simples, basta pensar que cada produto que entra no mercado europeu tem de pagar uma taxa que corresponde ao carbono emitido para produzi-lo. Tem a vantagem de servir, simultaneamente, para financiar a transição, para escudar as empresas europeias da competição injusta a que são submetidas pelos standards ambientais que devem cumprir, e para incentivar outras potências a fazer o mesmo. Tudo isto é acompanhado por propostas de investimento público para compensar os "danos" causados e para apoiar a fase de transição entre modelos de produção, consumo e mobilidade.

Por muito que a UE faça no domínio do clima, será sempre pouco se outras grandes potências não se juntarem. Aí entra em cena a diplomacia climática europeia e o uso do endurecimento dos standards ambientais exigidos para a comercialização de produtos no mercado único, por exemplo. Falta saber se os outros blocos comerciais aceitariam isso sem acusar a UE de protecionismo.

Mesmo que todos os EM estivessem de acordo sobre estas medidas - longe de ser o caso -, haveria ainda um problema. Quem paga?

Em casa onde não há pão...

Os problemas da agenda da Comissão VDL estão dentro de casa. A fraca vitalidade económica europeia e as diferentes visões dos EM, associadas a processos decisórios que muitas vezes incentivam jogos de soma zero, onde o interesse nacional prevalece sobre o interesse coletivo, ditam que o Conselho seja, neste momento, um fraco aliado de VDL.

O desafio número um de VDL soa familiar: falta-lhe dinheiro. Usemos o exemplo das medidas de combate às alterações climáticas. A própria Comissão Europeia estima que sejam necessários 260 mil milhões euros para recuperar o défice de investimento "verde" de forma a atingir a redução de 40% em 2030. VDL quer ser ainda mais ambiciosa - 55% de redução -, mas os valores anunciados são da ordem dos cem mil milhões. Na defesa, o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos estima que sejam precisos entre 100 e 300 mil milhões de euros apenas para construir capacidades próprias de defesa, sem capacidade de ataque.

A ambição política da Comissão esbarra na timidez orçamental dos EM, que aproveitam a (presumível) saída do Reino Unido para justificar descontos na sua contribuição no próximo orçamento plurianual (QFP) da UE. É por isso que, quer a agenda climática, quer o estímulo da economia digital, quer o investimento na segurança e defesa, estão longe de estar garantidos. A discussão do QFP não sai nunca de valores próximos de 1% do PIB da UE, e ainda exige que se mantenham os programas atuais. Não é possível ter novos programas sem acrescentar dinheiro ou retirar aos existentes, a não ser que finalmente se discutam e criem os recursos próprios da UE (entre os quais poderão estar os famosos "impostos europeus").

Há diversos anúncios sobre uma "Conferência sobre o futuro da Europa", mas não se sabe ainda o formato. A proposta tem como objetivo tornar a Europa "mais unida e soberana" e não temer revisões de tratados - algo também já sugerido por David Sassoli, presidente do Parlamento Europeu. Talvez isto signifique voltar a tentar um processo de eleição "direta" do presidente da Comissão em 2024; talvez signifique voltar a tentar as listas transnacionais; talvez signifique a queda da unanimidade em alguns dos temas mais "críticos" para os Estados (política fiscal, segurança e defesa, política externa).

Por fim, importa recordar que a União Europeia foi criada como um clube de democracias, mas tem vindo a perder essa condição em alguns dos seus membros - Hungria, Polónia, Roménia, Eslováquia... a lista de países com problemas no seu Estado de direito é grande. Não resolvendo este desafio, fica cada vez mais difícil "ter mão" na União. No entanto, não será fácil para a Comissão fazer mais do que fez no mandato anterior, no qual já usou as ferramentas disponíveis, sem grande sucesso. Um dos muitos pontos em que VDL terá de inovar para materializar o desejo da sua comissão geopolítica. Serão cinco anos interessantes.

Especialista em assuntos europeus

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