"Com Putin temos de estar preparados para tudo"

Professor associado da Universidade Nova e investigador integrado do IPRI, Tiago Moreira de Sá diz que a Rússia violou as regras da ordem internacional. E que Putin só negociará "se for forçado a isso".
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O encontro entre o ministro dos Negócios Estrangeiros russo e ucraniano terminou num impasse. Sem grandes avanços no flanco diplomático podemos temer um escalar dos ataques russos no terreno para acabar com a surpreendente resistência ucraniana?
Com Putin temos de estar preparados para tudo. Todas as tentativas de apaziguamento ao longo dos anos falharam e isso aconteceu porque não quisemos assumir que Putin só entende e só respeita o poder e a força. Na sua visão, o mundo está em grande transformação, com uma acentuada erosão da ordem liberal internacional, um processo de transição de poder no sistema internacional devido ao declínio da "potência dominante" - os EUA - e a ascensão das "potências desafiadoras" - a China e, presumivelmente, em seu entender, a Rússia - e uma transferência do centro de gravidade do poder e da riqueza mundial do Ocidente para a Ásia. O presidente da Rússia considera assim que, neste momento, a balança de poder está a seu favor, logo o tempo é de avançar, não de recuar nem de negociar. As rondas negociais em curso parecem fazer apenas parte da lamentável coreografia iniciada há uns meses e que, é bom recordar, incluiu repetidas promessas de que não ia haver qualquer invasão. Não podemos voltar a ser inocentes: Putin só aceitará negociar se for forçado a isso, ou seja, se encontrar pela frente um monumental contrapoder.

As sanções ainda não conseguiram travar a Rússia. Jogar a arma do gás e do petróleo é mais perigoso para Moscovo ou para a Europa?
Precisamente pelo que acabei de dizer, perigoso para a Europa e para o mundo é não usar todos os instrumentos de poder que tem à sua disposição para conseguir alcançar uma "Dissuasão Credível". Deixe-me voltar à ideia anterior. Se a transição de poder ao nível internacional já começou há uns anos, porque é que Putin avança agora? Porque considera que os EUA - e o Ocidente em geral - estão fracos depois da dupla débâcle no Iraque e no Afeganistão, depois da forma como aconteceu a saída do território afegão, depois da invasão do Congresso norte-americano há pouco mais de um ano por apoiantes do anterior presidente, Donald Trump. A tudo isto há a adicionar a extrema polarização interna e a gestão de um retraimento estratégico sempre muito difícil de gerir. Ao mesmo tempo, Putin considera que a Rússia está forte após ter vencido, para todos os efeitos, a guerra da Síria e de se ter armado fortemente nos últimos 20 anos. Num plano mais geral, a resposta da Europa e dos EUA tem de ser muito forte para preservar o mínimo de ordem internacional. Esta não é uma abstração. Consiste nas regras, normas, leis e instituições que os Estados consensualizam para reger as suas relações, prevendo incentivos para os cumpridores e punições para os infratores. A Rússia violou todas as regras da ordem internacional - violou a carta das Nações Unidas, violou o direito internacional, violou os tratados que a própria assinou de livre vontade, violou o princípio da soberania dos Estados e violou a integridade territorial de outro Estado. Tem de pagar exemplarmente por isso para que não volte a fazê-lo. E também para que as outras potências revisionistas, como a China, o Irão e a Coreia do Norte, não se sintam confortáveis para rever a ordem internacional e as ordens regionais.

O presidente Zelensky já se disse desiludido com a NATO, abrindo a porta a uma neutralidade que talvez apazigue Putin. A Aliança Atlântica errou ao criar expectativas nos ucranianos?
Recuso a premissa subjacente a esse raciocínio, pois, neste momento, ele só serve para tentar desculpar o comportamento da Rússia, que é a todos os títulos inaceitável. Esta é a guerra de Putin, não da NATO. O presidente russo decidiu invadir militarmente um país soberano, que não ameaçava de nenhuma forma a Rússia, para fazê-lo desaparecer do mapa como tal. Fê-lo mesmo sabendo que a questão da adesão da Ucrânia à NATO, e também à União Europeia, não estava em cima da mesa. Toda a gente sabe - e, por maioria de razão, Putin também - que a Alemanha e a França vetavam a adesão da Ucrânia. Essa era, até esta guerra, uma não questão. A Rússia não invadiu a Ucrânia para evitar uma iminente entrada do país na NATO e sim porque isso faz parte da sua Grande Estratégia. A Rússia tem um conceito estratégico de tipo imperial que pretende a revisão das fronteiras no espaço pós-soviético, pois considera que as suas fronteiras geográficas não coincidem com as suas fronteiras de segurança. Por isso, está a fazer coincidir as duas fronteiras pela força pedaço-a-pedaço, no que já foi chamado de "tática do salame". E, em rigor, até começou mesmo antes de Putin, nos anos 1990, na Transnístria. Seguiram-se, em 2008 a Abcásia e a Ossétia do Sul; em 2014 a Crimeia e parte de Donbass; agora, a totalidade da Ucrânia.

A União Europeia tem mostrado rara unidade neste conflito. Mas se se prolongar e com a chegada de milhões de refugiados ucranianos, é de esperar que esta dure?
Putin conseguiu o feito de unir a União Europeia como talvez nunca tenhamos visto, de voltar a unir a Europa e os EUA, invertendo assim a deslocação das prioridades estratégicas norte-americanas do mundo euro-atlântico para o Indo-Pacífico, e de ressuscitar a NATO da sua morte cerebral. E tudo isto está para durar. A este respeito, lembrei-me da célebre conversa entre o primeiro-ministro belga, Paul-Henri Spaak, e o representante soviético, em setembro de 1948, durante a Assembleia-Geral da ONU, com o político europeu, exasperado, a virar-se para o parceiro de diálogo e a atirar: "Sabeis qual é a base da nossa política? É o medo! O medo de vós, o medo do vosso governo, o medo da vossa política".

Qual será o objetivo final da Rússia? As ambições imperialistas de Putin podem levá-lo a não se ficar pela Ucrânia e tentar dominar outros países da ex-URSS?
Putin irá até onde o deixarem ir. É preciso ter sempre presente que Putin avança por uma ideia, a ideia da Grande Rússia, do Império russo, que quer refazer. Não é por acaso que tem uma estatueta de bronze de Pedro, o Grande, no seu gabinete no Kremlin. As suas outras grandes referências são Catarina, a Grande, Guilherme I e Vladimir I. Também convém não esquecer o discurso que fez na véspera do início desta guerra sobre a história da Rússia.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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