"Com a participação política, tornei-me feminista, era só homens"
Leia a primeira parte desta entrevista:
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Tem filhos?
Uma rapariga, de 25 anos.
Como é que se educa um filho para as questões da igualdade?
As crianças e os adolescentes não são moldados por nós, mães e pais. Temos um papel importante mas não somos os únicos a contribuir para a educação dos nossos filhos e filhas. Como passei muito tempo a contradizer os meus pais e a tentar ser diferente, tive uma grande preocupação em não catequizar a minha filha. Tentei dar-lhe liberdade e deixar que fizesse a sua leitura das coisas e o seu caminho e é isso que tem acontecido, está a fazer o seu caminho. Claro que lhe transmitia as minhas opiniões, às vezes mais acalorada, mas ela também é muito firme nas suas convicções.
Há cada vez mais homens a queixarem-se de violência doméstica, ainda faz sentido falar em violência de género?
Exatamente porque não tem que ver com as outras estruturas de desigualdade social é que falamos em violência de género, é o género que faz a violência.
A violência não é exercida por quem tem o poder, seja homem ou mulher?
Estamos a falar da hierarquia de poder em termos de género, os géneros têm diferentes poderes na sociedade. Quando falamos numa violência de género estamos a dizer que não é uma violência de homem ou de mulher, que não é um problema biológico. Na sociedade patriarcal em que vivemos, quem tem o poder, social, político, económico, capital social, são os homens. Historicamente, o género que tem mais poder é o género masculino.
Isso não está a contribuir para os homens terem vergonha e não apresentarem queixa?
Estou a falar como investigadora e considero que é importante fazer investigação sobre homens vítimas de violência. Mas a investigação, também a quantitativa, demonstra que os homens vítimas de violência são-no sobretudo por parte de outros homens.
E faz sentido introduzir o termo femicídio?
Faz, exatamente para fazer valer a diferença. O femicídio é a morte de pessoas que são assassinadas por serem mulheres. Por isso, gostamos de usar o conceito de género.
A situação piorou, há mais violência doméstica?
Não se pode dizer isso, a violência vem muito de trás, quando questiono as mulheres verifico que já existia no namoro. Só que, agora, as coisas estão mais visíveis. Um desafio que temos ao nível educativo é a banalização da violência, hoje tudo se resolve com violência. Essa é uma das minhas preocupações, nomeadamente em relação à violência no namoro. E há meios diferentes, nomeadamente tecnológicos, para exercer essa violência. Por exemplo, hoje meter uma fotografia íntima de ex-namorada no Facebook é de um grau de exposição que não era possível no meu tempo.
Não sente que as mulheres estão a levar mais tempo do que outros grupos sociais pela conquista de direitos, nomeadamente os homossexuais?
Esses grupos também lutam há muito tempo pelos seus direitos e o feminismo foi um movimento que ajudou muito outros grupos sociais. Por exemplo, as lésbicas tinham muita força no movimento feminista e desde muito cedo. Na I República, feministas lésbicas de grande renome e mesmo nos anos 1970/80, mas os seus familiares não nos deixam revelar e têm todo o direito a fazê-lo.
Faz parte do Clube Safo, movimento dos direitos das lésbicas.
Sim, faço parte, acho importante. Desde muito cedo que lutaram pelos seus direitos, o feminismo ajudou muito nesta luta.
Quando é que se tornou feminista?
A seguir ao 25 de Abril não era feminista, achava importante intervir mas não sentia essa necessidade. Depois, com a participação política, tornei-me feminista. Pertenci ao Movimento de Esquerda Socialista e era muito homem, no Comité Central eram só homens, havia congressos inteiros sem uma mulher a falar. O feminismo ajudou-me a ser mulher, a gostar de mim, a valorizar o sexo feminino.
Até onde a leva esse feminismo?
Por exemplo, recuso-me a ver programas de televisão só com homens. Comprar jornais só com colunistas homens, não é porque a opinião dos homens não me interesse, mas só homens?
E envolver-se politicamente?
Fiz parte de um partido, agora estou bastante distante. Em primeiro lugar porque a UMAR não me deixa tempo e, em segundo, porque é uma organização de mulheres que pertencem a vários partidos políticos e, por respeito para com elas, prefiro não demonstrar as minhas preferências políticas.
Nunca foi abordada por um partido para ocupar uma cadeira?
Já fui convidada para encabeçar uma lista pelo Porto para a Assembleia da República e não aceitei. O que é que se faz na AR? É tudo tão rápido, no momento, prefiro fazer as coisas com tempo, com calma e devagar, para fazer bem. Não me parece que o meu contributo seja importante para o que lá se passa, faço mais diferença com a investigação, com as ações de sensibilização. Outra coisa que não seria capaz de fazer como deputada era intervir em áreas que não sou especialista, não gosto de dar bitaites sobre aquilo que não sei.
Por essa ordem de ideias, também nunca seria comentadora?
Não, não seria. Falar sobre tudo e sobre nada não é o meu estilo. Mas as pessoas têm talentos diferentes. E o meu talento é fazer as coisas com calma, eu sou da música clássica, do moldar o barro, de fazer as coisas com calma.
Qual é o partido que mais defende as mulheres?
Defender, defender as mulheres, é a esquerda de uma forma geral. O PCP defende mais nas questões laborais, o BE e o PS têm feito muito para o avanço da qualidade de vida das mulheres. Os partidos identificados com a direita não têm trabalhado tanto essa área mas, por exemplo, a secretária de Estado do PSD, Teresa Morais, para quem a igualdade de género não era uma prioridade, fez um bom trabalho no campo da violência doméstica e provocou avanços. Portanto, não é só o partido, não é só a ideologia, as pessoas que ocupam os cargos também fazem a diferença.
Quais são os projetos que está a desenvolver?
Na faculdade tenho o projeto Bystanders Developing Responses against Sexual Violence, trata-se de desenvolver respostas para que as pessoas intervenham quando assistem a situações de assédio sexual, sou a coordenadora internacional para mais três países, Malta, Inglaterra e Eslovénia, e em que a UMAR é parceira. É um projeto a desenvolver nas escolas secundárias, com docentes e não docentes. Esta pesquisa surge na sequência de uma investigação anterior para perceber como é que os países intervêm nas áreas da violência contra as mulheres, no tráfico de seres humanos e na violência contra as crianças (CEINAV - Cultural Encounters in Intervention against Violence). Na UMAR, estou envolvida no projeto Artemis, prevenção da violência e promoção dos direitos humanos na escola, que também envolve as questões do assédio, e que estamos a trabalhar em Braga, Coimbra, Porto e Lisboa.
Consegue ter tempos livres, o que é que faz?
Ouço música, leio, sobretudo romances policiais. E tenho sempre um livro de poesia na minha cabeceira, da Ana Luísa Amaral, da Maria Teresa Horta...
Tinham de ser de mulheres.
Não, não faço questão, mas às vezes calha. Mesmo na investigação, acabo por ler mais coisas de mulheres porque nos temas que pesquiso há mais mulheres. Mas também há homens, por exemplo, estamos a organizar a II Conferência Europeia de Violência Doméstica [6 a 9 de setembro no Porto]em que participa um grande investigador e que leio há anos, o Walter S. DeKeseredy.
Qual é a sua referência em Portugal?
É uma referência muito importante, mas que não consegui seguir o modelo: a Maria de Lourdes Pintasilgo. Era uma mulher com muita serenidade e que conseguia construir uma equipa à sua volta. Entrei para a Fundação [Cuidar o Futuro] era uma miúda e fizemos reuniões com o Graal, onde estava a Maria de Lourdes Pintasilgo. Era uma mulher muito serena, refletida e com um pensamento de futuro.
Qual é a notícia que mais gostaria de ver nos jornais?
As pessoas em Portugal têm todos os direitos humanos, saúde, habitação, emprego. Homens e mulheres.
Alguma vez será publicada?
Já estivemos perto do pleno emprego.
Pleno emprego mas não plenos direitos.
Não, esses vieram mais tarde. E, neste momento, estamos a recuar, Portugal está em contraciclo. Nos Estados Unidos, América Latina, com a direita a ganhar, tem havido um retrocesso que é preocupante. Espero que os seres humanos tenham atingido um nível de reflexão que não permita que se assista a casos de violação dos direitos como aconteceu ao longo do século XX. Na maioria das áreas da vida, estamos muito melhor do que em meados do século XX e, em Portugal, nem falar.