Muito antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, o Donbass já era, desde 2014, palco de uma guerra entre os separatistas apoiados por Moscovo e as forças do governo ucraniano. Um retrato dessa realidade está por demais explícito em Donbass (2018), de Sergei Loznitsa, recentemente lançado nas salas portuguesas, mostrando, num registo de farsa, diversas situações inspiradas em relatos do que se tem vindo a passar ao longo dos anos nessa região do leste da Ucrânia; como se não fosse possível dar uma imagem da estranheza desta guerra sem recorrer a um conjunto de quadros mais ou menos grotescos. Também é assim que a nova aquisição do catálogo da Filmin, Bad Roads, primeira longa-metragem da ucraniana Natalya Vorozhbit, se debruça sobre o mesmo território, embora a sua abordagem esteja muito distanciada da sátira de Loznitsa. O drama, não sem um toque de absurdo, adquire aqui contornos de alta tensão e espalha-se por quatro histórias com personagens e voltagens diferentes. O que une ambos os filmes é um certo vaticínio da atualidade..Estreado na Semana da Crítica do Festival de Veneza de 2020, Bad Roads foi o candidato da Ucrânia às nomeações para o Óscar de melhor filme internacional; um dado do currículo desta obra que obviamente ganha agora outra ressonância. A sua estrutura em quatro partes começou por ser uma peça de teatro, escrita pela própria realizadora (aliás, mais conhecida como dramaturga). Algo que nos impele a imaginar que a intensidade aqui alcançada, em particular pela linguagem do cinema, dificilmente seria tão palpável em expressão teatral. Isto é, sem a proximidade de uma câmara que exponencia o detalhe, no caso, das excelentes interpretações do filme..Em referência direta ao título, o primeiro conto tem lugar numa estrada de terra batida onde um diretor de uma escola, a conduzir ligeiramente alcoolizado, se mete em trabalhos num posto de controlo, ao perceber que não tem à mão o seu passaporte. A situação começa com ar de rotina mas não demora muito a ficar agressiva, à medida que os procedimentos do comandante e do soldado de serviço vão subindo de tom contra o civil indefeso, que a certa altura diz ter visto, a espreitar do bunker dos soldados, uma aluna sua... Será? Esta afirmação é quanto basta para, de repente, se passar de uma circunstância caricata para uma leitura mais aprofundada dos efeitos morais da guerra junto da população. Que é como que diz, o trauma de uma presença militar prolongada..Vorozhbit não dá ao espetador qualquer confirmação de que o homem tenha visto mesmo a sua aluna (poderia ser só o álcool no sangue a produzir uma miragem numa tarde abrasadora?). O que importa é que essa visão faz a ponte para o segmento seguinte de Bad Roads, centrado em três adolescentes numa paragem de autocarro à espera dos namorados - estes, soldados inimigos que vemos apenas à distância. Essa espera dá azo a conversas leves, de olhos postos nos telemóveis, que vão destilando a lógica transacional das suas relações. Conforme o dia cai e o crepúsculo se instala, uma das raparigas fica sozinha na paragem, por fim tolerando a companhia da avó que lhe pede para voltar para casa com ela..É nesta solidão feminina a céu aberto, combinada com o desconhecimento do que acontece concretamente entre as jovens e os soldados, que a realizadora semeia o brutal terceiro ato, sobre uma jornalista (extraordinária Maryna Klimova) capturada por um soldado monstruoso. Será a secção do filme mais longa e difícil de suportar. Porém, o modo inteligente como a personagem da jornalista dá a volta à sua condição de vítima, começando a contar histórias para tentar extrair o mínimo de humanidade do soldado, faz com que os quase 40 minutos dessa sequência claustrofóbica se transformem num admirável trabalho de interpretação e encenação: a luz fraca do bunker cruza-se com a tremenda habilidade da atriz..Chegamos então ao último "episódio", precisamente, através de uma das narrativas da jornalista, sobre uma galinha atropelada. Entre todos, este é o modelo perfeito de conto: uma jovem mulher atropela uma galinha e dirige-se à propriedade dos donos, um casal pobre, tentando compensá-los monetariamente pela perda. Com o seu quê de nonsense, o gesto nascido de um genuíno desejo de expiação acaba por embater em dois corpos que acumulam toda uma vida de ressentimento de classe. E aquilo que era apenas uma boa ação ridícula torna-se um pesadelo à flor da pele, fazendo insinuar um registo de terror... Esses minutos finais de Bad Roads atingem a clareza da observação global das quatro histórias. A saber: os corpos que habitam uma região em guerra não podem senão entranhá-la na sua vivência quotidiana..Para além da estreia exclusiva deste filme ucraniano, a Filmin lança agora o documentário We Are Russia (2019), de Alexandra Dalsbaek, um testemunho da ação de jovens ativistas russos, inspirados por Alexei Navalny, numa Moscovo vigiada em cada esquina e onde a violência policial é a regra. A câmara de Dalsbaek segue o fio de esperança e energia desta juventude que contraria o ambiente de medo em véspera das eleições presidenciais de 2018, tentando espalhar a sua mensagem antipatia nas ruas, ao mesmo tempo que encontra resistência numa geração mais velha acomodada, quando não fervorosamente crente na propaganda do regime. É um olhar que surge quase como complemento a outro documentário também disponível na plataforma, O Caso (2021), de Nina Guseva, esse igualmente sobre os protestos pacíficos em Moscovo, mas mais focado na luta de uma advogada, Maria Eismont, que zela, de forma incansável, pelos direitos dos ativistas russos..dnot@dn.pt