"Com a esclerose, os músculos emperram. O desporto ajuda a libertar"
Começou a apanhar ondas aos 3 anos, às cavalitas do pai, que praticava bodysurf. Passou para o bodyboard e depois para o surf. Voltou às carreirinhas aos 30. Aos 36 anos, Miguel Rocha, conhecido como Migas, é tricampeão nacional de bodysurf (2016, 2017 e 2018), uma modalidade que, de acordo com os praticantes, "é a forma mais pura de surfar". Com uma pequena prancha na mão, enfrenta as ondas com o corpo. É assim que se abstrai do cansaço e das dores provocadas pela esclerose múltipla, uma doença que afeta o sistema nervoso central e para a qual não são conhecidas causas nem cura. Não existe melhor medicação, garante.
Filho de pais portugueses, Miguel nasceu nos EUA, onde viveu até aos 9 anos. Mora na praia da Vagueira, no concelho de Vagos, onde abriu uma loja de surf em 2018. É lá que o encontramos. Atrás do balcão, a foto do sobrinho, Tiago Mesquita, que no ano passado conseguiu o título de Campeão Nacional Júnior de Bodysurf. É "o menino" do tio, que adia o sonho da paternidade enquanto testa novos medicamentos em ensaios clínicos. Prepara-se para entrar em mais um - é um dos oito portugueses que vão receber um medicamento injetável que ainda só está disponível nos EUA.
A uma etapa do fim do campeonato, Miguel segue em segundo lugar. Divide-se entre o mar, o design industrial, a loja, as aulas dos miúdos, o basquetebol, os amigos, a família e a namorada. Maria Pedro é o seu "mar em terra". Tal como os amigos, diz-nos que existem dois Migas: um antes do diagnóstico, outro depois. A essência é a mesma, mas "a vontade e a coragem são completamente diferentes".
Como é que era a vida do Miguel antes do diagnóstico de esclerose múltipla?
Ui. Gostava muito de festas e de sair à noite com os amigos para beber uns copos. Fazia muitos planos a longo prazo e poucos a curto prazo.
O que mudou?
Comecei a aproveitar mais os dias, a dar mais valor às coisas. Havia aquele pensamento: se não fizer hoje, faço amanhã. Passei a contrariar esse pensamento e a fazer hoje o que quero fazer. Foco-me mais nas coisas. Isso foi muito importante. Comecei a ter uma vida muito mais saudável, a alimentar-me melhor, deixei de fumar, de beber. Descansava melhor e sentia-me superbem. Ainda saio, mas não tanto. Chega à uma da manhã e estou morto. Dantes era até de manhã. Foi nessa altura que dei mesmo valor às pessoas que estavam à minha volta.
Porquê?
Quando estás bem, é fácil teres muitos amigos. Quando estás na merda, muitos fogem. Isso não aconteceu comigo. Eles ficaram sempre ao meu lado. Cheguei a pensar que ia ficar sozinho, mas não fiquei. A Maria [namorada] foi muito importante, tal como os meus amigos e a minha família.
Costuma dizer que é mais feliz agora...
Sem dúvida. Acho que tem que ver com o facto de ter começado a viver mais a vida, a aproveitar cada segundo, os dias.
É frequente ouvir isso de pessoas que passam por situações de doença...
Quando achas que a vida vai ser mais curta, aproveitas mais cada momento.
Existe esse medo?
Nem penso nisso.
O diagnóstico surgiu como?
Acordei um dia com visão dupla e com a língua completamente dormente. Até a água sabia mal. Não liguei. Fui trabalhar, mas como trabalho em AutoCAD, ver a dobrar fazia-me imensa confusão. Falei com o meu chefe e fui para casa. À noite fui jogar futebol com a malta, como era habitual, e não conseguia ver nada. Desisti logo. Fui falar com a minha namorada e fomos para o hospital. O médico que me atendeu nas urgências disse que era stress e enviou-me para casa. Fiquei muito mais calmo. Mas, em conversa com um amigo, ele estranhou, porque sempre fui uma pessoa calma. Encaminhou-me para uma médica em Coimbra, que me fez montes de exames. Num dia fiz uma ressonância magnética. Já estava na Figueira da Foz quando me ligaram para voltar. Chegámos lá, entrámos numa sala, e a médica disse-me: tem esclerose múltipla. Não foi exatamente assim, mas disse isto.
Como reagiu?
A primeira coisa que perguntei foi: posso continuar a surfar? Não sabia o que dizer. Fiquei parvo, chocado. Perguntei se podia surfar só para dizer alguma coisa, porque fiquei sem palavras. Ela disse-me que não. E essa notícia foi ainda pior. Mas nunca me vi como um coitadinho. Queria ultrapassar aquela fase menos boa e voltar ao que era.
Já sabia o que era a doença?
Quando ela me disse isso, a ideia que me veio à cabeça era uma pessoa de cadeira de rodas. Não conhecia nada da doença. A médica disse-me para não me preocupar, que agora já não é assim, que é possível ter uma vida normal, mas eu estava morto por dentro. Fiquei lá internado duas semanas. Quando temos um surto, temos de fazer megadoses de cortisona. Fiz cinco dias seguidos, sob vigilância, em dieta. Mas tinha sempre gente no quarto, o que foi muito importante para ajudar a passar o tempo. O meu sobrinho não me foi ver...
Porquê?
O avô dele tinha morrido há pouco tempo e a última vez que ele o viu foi no hospital. Ele tinha ideia de que se me fosse ver era a última vez. Não queria ir por causa disso.
Nota-se que o Tiago ocupa um lugar muito especial...
O meu sobrinho é o meu menino. Amanhã vou buscá-lo para vir passar o fim de semana. Passo muito tempo com ele.
Ainda não tem filhos?
Não. Quero ter, mas as medicações que eles me deram até agora não têm resultado muito bem. Vou entrar num novo ensaio clínico. E enquanto estiver no ensaio não posso ter filhos.
Fale-nos da relação que tem com o mar. Como começou?
O meu pai pratica bodysurf desde que eu tinha 3 anos. Comecei a apanhar ondas às cavalitas dele. Apanhei o gosto e comecei a surfar sozinho. Quando eu tinha 5 ou 6 anos, comprou-me uma prancha de bodyboard e fiz este desporto até aos 18. Naquela altura era mais cool fazer surf e mudei. Só há seis ou sete anos é que fui a um festival, na Figueira, e vi que estavam a vender as pranchas de bodysurf. Quando as vi, pensei: "Eu conheço isto. Eu e o meu pai chamamos-lhes as boleias." Foi a partir daí que comecei a praticar bodysurf. Perguntei se havia campeonatos, mas não existia nada. Só em França. Dois anos mais tarde, fizeram o primeiro campeonato e inscrevi-me.
Nesse ano qual foi a classificação?
Fiquei em nono lugar. E fiquei superfeliz. Nunca tinha visto ninguém a fazer bodysurf em Portugal ao vivo. Isso deu-me mais pica para treinar. Na segunda etapa, na Figueira da Foz, fiquei em primeiro lugar. Fiquei doido. Estavam lá os vagueirudos todos a ver. Vão sempre comigo, o que é brutal.
Ajudam a acalmar os nervos?
Sim. Nos campeonatos há sempre nervosismo. Começa sempre a doer-me a barriga. É muito bom ter lá os vagueirudos, porque ajuda a ultrapassar.
O primeiro título foi depois do diagnóstico?
Sim. Tive o diagnóstico em janeiro de 2016. A médica disse-me que não podia surfar, porque tinha medo que tivesse um problema muscular enquanto estava sozinho na água. Disse-me que o melhor era desistir. Foi pior essa notícia do que quando ela me disse que tinha esclerose múltipla. Estive três meses sem ir à água.
Foi um período doloroso?
Muito. Uso o mar para recarregar baterias. Tento viver como se não tivesse esclerose. E o mar ajuda muito. Quando estou mais em baixo vou lá e saio da água mais bem-disposto. Se começo a pensar que estou mal, fico pior. Se estiver mais cansado e for surfar ou fazer praia, sinto-me mais vivo. Ajuda-me a melhorar. É a melhor medicação que tenho. Com a adrenalina, não tens tempo para pensar em mais nada. O cansaço vem depois. Às vezes saio e sinto as pernas dormentes. Estar longe do mar custou-me, claro. Também era difícil ir à água naquela altura, porque tinha visão dupla. Via tudo a dobrar, custava-me imenso trabalhar. Andava muito cansado da perna esquerda. Parecia que tinha corrido uma maratona ao pé-coxinho. Era estranho.
Quando é que voltou ao mar?
Três meses depois do diagnóstico, um amigo meu organizou uma viagem para a malta do bodysurf a Tonel, em Sagres. Eu ia mais pelo convívio, não ia surfar. Mas cheguei lá, olhei à volta, e pensei: se for à água e me sentir mal, alguém me vai dar a mão. E arrisquei. Não disse nada aos meus pais nem aos médicos, e entrei com eles na água. Senti-me superbem, como se nada fosse. Andei lá o fim de semana a surfar e achei que valia a pena o risco. Não estava com intenções de fazer o nacional, mas inscrevi-me na mesma. Na primeira etapa fiquei em quarto lugar e isso deu-me muita pica. Treinei, treinei, e consegui o primeiro lugar nesse ano.
Que sintomas é que tem no dia-a-dia?
Principalmente cansaço e dores nas pernas. Às vezes acordo de noite e não consigo dormir com dores. Mas sinto, sobretudo, cansaço. Estive a fazer duas medicações no âmbito de um ensaio clínico: uma verdadeira e um placebo. Agora estou a fazer o desmame para depois começar a fazer uma medicação nova que só vem para Portugal em 2022. É uma das vantagens de estar nos ensaios. Também faço fisioterapia e acupunctura para ajudar. Faço só uma vez por semana, porque são caras, mas noto diferença. No dia seguinte, fico mais solto, mais flexível.
Como é que a medicação atua?
Os médicos explicaram-me isso de uma maneira muito fixe. Imagina que há uns peixes que me estão a atacar. A medicação que eu estou a fazer dá comida aos peixes para eles não me atacarem. De vez em quando tenho umas recaídas.
O que é que acontece nessas alturas?
Fico supercansado, sem vontade de fazer nada. Já tive umas quatro ou cinco. Quando isso acontece, fazemos megadoses de cortisona durante cinco dias. Fico todo inchado e não consigo dormir. Há três ou quatro semanas tive um surto. Estava de férias nessa altura e não me apetecia fazer nada.
Nos dias em que o cansaço e as dores se agudizam é possível trabalhar?
Sim. Eu trabalho. Se estiver em casa, é pior. Sou designer industrial há onze anos.
Mas o sonho de miúdo era ser educador de infância...
Já quase nem me lembrava disso. Sim, porque eu adoro miúdos. Se houver um jantar em que haja mesa de miúdos, sento-me ao lado das crianças. Não sei, acho que nunca cresci. Mas, por um lado, ainda bem que não fui educador. Não sei se tinha paciência para aturar 20 na mesma sala.
Como é que o design apareceu?
Foi um bocado por acaso. Quando acabei o 12.º ano não queria estudar mais. Como fazia os verões como nadador-salvador, sabia bem chegar ao final do mês e receber dinheiro. Disse à minha mãe que não queria estudar mais e ela arranjou-me trabalho numa fábrica de design industrial, num armazém, a conduzir empilhadores o dia todo. Estive lá cinco meses. Não usava a cabeça para nada. E decidi ir estudar. Tinha um amigo que andava em Coimbra na ARCA, fui lá, vi os cursos e arrisquei. Ainda antes do final do curso, disseram-me que esta empresa estava a precisar de um designer. Fui lá e fiquei. Antes de terminar o curso, já estava a trabalhar.
E o que faz lá?
Faço modelação 3D de pavilhões, pontes e outras estruturas.
Como concilia o design, a loja de surf, o bodysurf e o basquetebol?
Trabalho das 06.00 às 14.00 na fábrica e venho das 17.00 às 20.00 para a loja. Depois tenho treinos de basquetebol três vezes por semana. Acho que foi isso que me deitou um pouco abaixo. Descansar é muito importante para todos, mas, para mim, é mesmo muito importante. No ano passado e há dois anos andava morto. Às vezes só dormia cinco horas. Mas o desporto, apesar de me cansar muito, alegra-me. No inverno, por exemplo, se ficar uma semana sem ir ao mar por causa do tempo, parece que ainda fico mais cansado. Com a esclerose, os músculos emperram. O desporto ajuda a libertar.
Há um português, o Alexandre Dias, que sofre de esclerose múltipla e faz o Ironman...
Agora há outro rapaz, o Bearded Runner, que faz ultratrails a correr 12 horas. Essas histórias inspiram. No meu caso, foi a história da Luísa Sacchetti, que é aqui de Aveiro, que me inspirou. Depois de descobrir que tinha a doença, e já lhe custava a caminhar, ouviu falar numa viagem de veleiro. Fez uma dessas viagens e diz que foi o turning point, a maneira de dar outro sentido à vida. Ao ler essa história pensei: não tem de ser mau comigo.
Em que fase soube dessa história?
Ainda no hospital, quando tive o primeiro surto. Deram-me um livro que explicava em palavras simples o que era a doença. No final, tinha essa história. Depois conheci a Luísa no Facebook e começámos a falar. Inspirou-me, sem dúvida.
E agora é o Miguel a inspirar outros
Depois de saber que tinha a doença, houve um amigo, o Ângelo, que me disse que me queriam fazer uma entrevista para a televisão, mas eu disse-lhe que não gostava de falar, que ficava muito nervoso. Ele insistiu. E eu pensei: se a notícia da Luísa serviu de exemplo para mim, a minha pode servir de exemplo para alguém. Só por isso já valia a pena. E disse que sim. Isso ajudou-me. Como falo pouco, foi uma maneira de me começar a libertar. Vejo entrevistas que fazia em 2016 e noto que estou muito mais à vontade agora. No início marcava sempre as entrevistas na praia, que é onde me sinto em casa, e agora já não.
Tem dado a cara pela doença. Como é que vê a relação dos portugueses com esta patologia? Há muito desconhecimento?
Sem dúvida. Como eu tinha, muita gente tem. Há pessoas que pensam que não tenho nada, porque ando bem, jogo futebol, vou surfar. Mas é uma doença escondida, não é percetível. Prende-se muito com o cansaço, a cabeça.
Por ser escondida é também desvalorizada?
Sim, principalmente pelas entidades patronais. Há dias em que estou mesmo estoirado e não me apetece fazer nada. Muitas pessoas não percebem e associam isso à malandrice. Mas, desde que tenho a doença, se faltei uma semana foi muito.
Existem grupos para partilha de informação sobre a doença?
Sim, faço parte de um grupo de doentes e cuidadores no Facebook. Há sempre muita partilha de informação, pessoas a colocar dúvidas. Em vez de telefonar à médica ou ir ao hospital, posso escrever ali as questões. Muitas pessoas já passaram por aquilo que estou a passar. No início estava em vários grupos e alguns só metiam para baixo em vez de dar força. Tem de se fazer uma escolha muito boa. Quando partilhava notícias sobre as vitórias no campeonato, por exemplo, alguns davam os parabéns, mas havia pessoas que diziam: "Hás de falar comigo daqui a cinco anos a dizer como estás." Limitava-me a dizer "obrigada".
Voltando ao bodysurf, quais são os objetivos na modalidade?
Acho que já os atingi. Queria ser campeão nacional e fui três vezes. Agora tenho dado algumas aulas a um miúdo de 4 anos. Acho que me divirto mais eu na água do que ele. É mais adaptação ao meio aquático para se sentir à vontade, perder o medo. No futuro, a minha ideia é ensinar, ter uma escolinha para miúdos.
Participou em competições a nível internacional?
Sim, no europeu e no mundial. No europeu o meu melhor foi o 3.º lugar e no mundial fiquei em 9.º lugar.
É difícil ter patrocínios nesta modalidade?
Tenho alguns, mas poucos. Não chega sequer para o nacional, muito menos para o europeu. As pessoas não estão para gastar dinheiro. Os patrocínios que arranjei são de malta conhecida que quer ajudar e empresas da zona. Também tem que ver com o facto de estarmos no início. Estamos no quinto ano. No ano passado criaram também o campeonato júnior, o que ajuda a desenvolver e a mostrar o bodysurf.
Esta loja de surf era um sonho antigo?
Há alguns anos que eu e o meu sócio - o Zé Miguel - andávamos a falar da loja, mas sempre a adiar. Abrimos no ano passado. Dá muito trabalho, mas compensa. É pena o inverno ser tão comprido aqui. Oitenta por cento da nossa faturação é no verão.
E a casa também...
Sim, eu e a Maria comprámos uma casa que já estava construída, mas a construção estava parada. Andávamos a namorá-la há oito anos e comprámos há dois. E ainda não está acabada. Foi tudo feito por nós. Cada móvel foi desenhado por mim e a pensar no futuro. Não há móveis altos, por exemplo. É tudo da cintura para baixo. E temos praticamente tudo no piso térreo. Dentro do que gostamos, tornámos a casa o mais acessível possível.
O diagnóstico veio acelerar a concretização desses projetos?
Tenho a certeza que sim.
O que falta concretizar?
Falta-me ser pai. De resto, penso que não tenho mais nenhum sonho que me falte concretizar. Também gostava muito de ter um projeto de vida ligado ao mar.
Namora com a Maria Pedro há 21 anos, desde os 16. Qual o segredo?
Somos como o Yin e o Yang. A Maria tem muita energia e é muito de emoções, enquanto eu sou mais calmo, tranquilo. E assim encontramos o equilíbrio. Confiamos plenamente um no outro. Cada um tem o seu espaço. Não há cobrança. No início era muito diferente. Havia muitos ciúmes, mas fomos aprendendo a gerir. Tinha algum medo de a perder por causa da doença, mas foi muito importante ela ter ficado. É o meu mar em terra, o meu ponto de calma.