São clãs do inferno. Unidos (às vezes amarrados) pelos laços de sangue, existem em todas as classes sociais, culturas e geografias. Na origem da zanga pode ter estado uma herança desigualmente repartida, um ato de traição ou um segredo infame. Quase sempre, é irreversível, irreparável e a paz, se chega, tem quase sempre o leito de morte como palco. Palco, isso mesmo. Desde a Antiga Grécia que as famílias desunidas alimentam generosamente o teatro e a literatura, sendo Lady Macbeth a melhor personificação da esposa e mãe que ninguém gostaria de ver sentada à mesa neste Natal. Em muitos casos, porém, a realidade supera amplamente a mais rocambolesca ficção..Segredos reais.As várias dinastias que, ao longo dos séculos, dominaram a Europa são insuperáveis em matéria de traições familiares que, em não poucos casos, desencadearam guerras de anos. Ricardo III de Inglaterra teria atirado os sobrinhos ainda crianças para a Torre de Londres, de onde nunca mais voltaram. Isabel I mandou assassinar a prima, Maria Stuart da Escócia. Luís XVI foi condenado à morte por um voto de diferença..Entre os que votaram a favor estava o seu primo, o duque d"Orléans. Da derradeira família que reinou em Portugal, os Bragança, ficou-nos uma imagem tão idílica quanto trágica, com príncipes louros de fatinho à marinheiro, e rainhas abnegadas, capazes de resgatarem, com os seus próprios braços, os filhos à fúria das ondas. Mas esse harmonioso postal não correspondia inteiramente à realidade. Ainda príncipe real, Dom Carlos foi muitas vezes chamado a tomar partido pela sua mulher, Amélia, contra os ímpetos caprichosos da mãe, a rainha Dona Maria Pia..Este clima estender-se-ia, já no exílio, a outros membros da família, quando o rei deposto, Dom Manuel II, casado mas sem descendência, viu com muito maus olhos o casamento tardio do seu tio, e herdeiro, o infante Dom Afonso com a milionária norte-americana Nevada Hayes. Como escreve a historiadora Ana Anjos Mântua na obra A Americana Que Queria Ser Rainha de Portugal, Dom Manuel, que nunca fora um prodígio de boas maneiras, não só nunca reconheceu essa união, como se incompatibilizaria com o tio, falando dele publicamente como de um pobre homem, a quem a solidão reduzira à imbecilidade..Apesar da propaganda em papel couché, não parece ter existido família real mais desavinda que os Windsor. Em 1936, a abdicação de Eduardo VIII alegadamente por amor a uma inaceitável divorciada, criou um fosso de décadas entre o antigo monarca, o seu irmão e sucessor, Jorge VI, e sobretudo a mulher deste, Elizabeth, mãe de Isabel II..Tornados Duques de Windsor, Edward e Wallis foram "convidados" a deixar território britânico e recriaram, num exílio dourado em França, todos os rituais de Buckingham Palace. Muitos anos mais tarde, quando, em vagas tentativas de reaproximação, o Príncipe de Gales visitou o tio, já à beira da morte, ficaria impressionado com a minúcia dessas cópias que traduziam, afinal, toda uma vida de ressentimento e mágoa. Morto em 1972, Eduardo regressaria ao seio dos seus antepassados, tendo sido sepultado com as honras devidas a um rei de Inglaterra, na Capela de São Jorge, no Castelo de Windsor. Assim o determinara a rainha Isabel II, sobrinha do defunto, que mais tarde permitiria que a noiva inaceitável de 1938 fosse sepultada ao lado do homem que trocara uma coroa e um império pelo seu amor..A Casa de Windsor (ou de Saxe-Coburgo Gotha antes de 1917) é, aliás, uma excelente fornecedora de histórias infames, com segredos tenebrosos guardados a sete chaves e silêncios pagos a peso de ouro. Entre elas, avulta o do pequeno príncipe John, filho mais novo de Jorge V e da rainha Mary, que morreu na adolescência, apenas rodeado pelos criados, porque, quer em público quer em privado, pais e irmãos não sabiam como lidar com o diagnóstico de autismo e epilepsia que lhe fora atribuído..Heranças envenenadas.Morto a 6 de dezembro de 2017, aos 74 anos, o rocker francês Johnny Halliday deixou um legado amargo aos familiares mais próximos. De acordo com o seu testamento, todo o património imobiliário que deixou, bem como a receita dos direitos de autor, ficaria totalmente para a mulher que com ele partilhara os últimos 20 anos de vida, Laetitia, e os dois filhos adotivos de ambos, ainda crianças..Prejudicados ficariam os dois filhos de anteriores relações do músico: David, 52 anos (fruto do casamento com Sylvie Vartan), e Laura Smet, 35 anos (nascida da ligação com a atriz Nathalie Baye), que rapidamente contestaram o documento, invocando que, de acordo com o direito francês, nenhum filho pode ser deserdado. Havia, todavia, uma pequena nuance: Johnny vivia nos Estados Unidos e fora exatamente nesse país que oficializara a derradeira vontade..Iniciar-se-ia rapidamente uma batalha jurídica (que está ainda longe do seu termo) que, mais do que discutir quem fica com o quê, pôs a nu, aos olhos da imprensa, uma guerra surda de décadas, feita de uma infinidade de grandes e pequenas traições, atos provocatórios, negligências várias. A imagem de harmonia familiar ante a perda, transmitida ao público, durante o funeral, estilhaçava-se, afinal, em mil pedaços, cortantes como facas..As heranças desiguais (ou tidas por injustas por uma ou mais partes) são uma das mais frequentes razões para guerras familiares que fazem a felicidade dos especialistas em direito sucessório. Em Portugal, a mais incrível história do género remonta aos anos 1950, envolve a multimilionária família Champallimaud, e incluiu peripécias rocambolescas como uma fuga em avioneta. .Falamos do caso Sommer. Aos 19 anos, António Sommer Champallimaud assumira as rédeas da difícil situação financeira da família, após a morte do pai (médico militar que acumulara dívidas à banca sobre um património que incluía terrenos na Quinta da Marinha, no Douro, em São Tomé e minas de cobre em Angola). O sucesso é total: aos 24 anos integra a administração da Empresa Cimentos de Leiria (ECL), propriedade do tio materno Henrique Sommer, e começa a acumular uma imensa fortuna que cresce ainda mais quando, em 1941, casa com Cristina de Mello, filha de Manuel de Mello e neta de Alfredo da Silva..À rivalidade com a família por afinidade somar-se-ão os numerosos episódios causados pela autêntica novela que foi a "herança Sommer", acompanhada ao pormenor pela imprensa da época, desencadeando autênticas paixões na opinião pública. Tudo começou em 1944, quando Henrique Sommer morreu, deixando por herdeiros a viúva, as irmãs e os quatro sobrinhos, entre os quais António..Todo-poderoso na administração da ECL, usou então as ações das tias para contrair um avultado empréstimo ao Totta. Em 1957 recusou a restituição dessa verba aos co-herdeiros e foi acusado de desvio de ações e abuso de confiança. Seguir-se-iam 16 anos de discussão e mais de 30 processos cíveis..Ao saber da iminência de um mandado de captura em seu nome, Champallimaud fugiu para o Alentejo e daí seguiu de avioneta até Madrid. Viajou depois para "destino incerto", de onde geria os negócios em Portugal, África e Brasil. Entre outras consequências, todo este enredo levá-lo-ia também a divorciar-se de Cristina, o que não causaria pouco escândalo no meio conservador em que o casal, com sete filhos, se movia. António Champallimaud só regressaria ao país em 1973, depois de ilibado de todas as acusações e ser declarado herdeiro da famigerada herança Sommer. Mas a paz não voltaria a sentar-se à mesa com esta família..Filhos e enteados.Christina Onassis não gostava de Jackie Kennedy, mas odiava Maria Callas, que considerava responsável pelo divórcio dos pais. No entanto, quando, em 1968, Aristóteles anunciou aos filhos a abrupta decisão de se casar com a viúva do presidente dos Estados Unidos, ela e o irmão, Alexander, ficaram em choque. Que a antiga primeira-dama não passava de uma caçadora de fortunas; que o pai ia ser posto a ridículo por se casar com uma figura pública muito mais nova do que ele, etc..Ainda assim, o armador grego, que não era homem para desistir de um troféu, não cedeu e casou-se mesmo. Christina compareceria à cerimónia, mas não se deixou fotografar porque, diz a lenda, terá passado todo o tempo a chorar. Madrasta e enteada nunca seriam próximas, mas o verniz aplicado à relação entre ambas só estalaria no funeral de Aristóteles, em 1975. Christina, profundamente abalada pela perda (dois anos após a morte do único irmão, Alexander, num acidente de avião), acompanhara a agonia do pai. Jackie, que vivia durante a maior parte do tempo em Nova Iorque, desembarcaria na Grécia apenas para o funeral, vestida por Valentino, a sorrir para os fotógrafos. Quando, nesse mesmo dia, Ted Kennedy, que acompanhara a ex-cunhada, abordou Christina para falar da herança, foi a gota de água. Christina, em fúria, mandou parar o carro e saiu. Nunca mais se falaram.. Mas se da má fama as madrastas não se livram, também há mães que são dignas discípulas de Lady Macbeth. Em Hollywood, a relação mais turbulenta entre mãe e filhos de que há registo é a da atriz Joan Crawford com as duas crianças por si adotadas, Christina e Christopher. De acordo com o livro escrito pela primeira, Mommie Dearest, os maus-tratos e a violência psicológica foram uma constante da infância e da adolescência de ambos, a que não seria alheio, segundo a autora, o alcoolismo e o comportamento sexual errático da "estrela". Consta que, na leitura do testamento de Crawford durante a qual os filhos descobriram terem sido deserdados, Christopher terá comentado: "A mãe teve a última palavra." Ao que Christina terá respondido: "Veremos." Um ano depois, saía o livro, que, em poucos dias, foi bestseller..As fortunas que se atiram sobre os problemas, a seda que tapa a disfuncionalidade, atingem o paroxismo no clã Agnelli, por muitos considerado a "família real italiana". Gianni Agnelli transformou a Fiat no império industrial que é hoje, influenciou decisivamente a política italiana do pós-guerra e teve nos braços as mais belas e cobiçadas mulheres, desde Marella (a princesa com quem se casou) a Anita Ekberg ou Jackie Kennedy..Fellini, fascinado pela aura irradiada pelo industrial, comparava-o a um rei da Renascença, que deveria ser esculpido em bronze equestre, com majestoso manto sobre os ombros. Apesar de tamanha glória e poder, Agnelli viu-se confrontado pela rebeldia juvenil dos dois filhos, Margherita e Edoardo, e pela repercussão mediática desses atos. O segundo, em quem o pai queria ver o sucessor de uma grande dinastia de negócios, era um sonhador, a quem o dinheiro pouco dizia..Acabou morto, alegadamente por suicídio, aos 46 anos, debaixo de um viaduto nos arredores de Turim. Ao contrário do previsível, o testemunho não passou para Margherita, a segunda filha. Quando o patriarca morreu, em 2003, o domínio do império familiar passou para o filho mais velho desta, à revelia da mesma. Numa batalha legal que não cessa de causar danos, Margherita contesta uma decisão que não acredita ser do pai, mas dos principais consiglieri deste, e da própria mãe, com quem cortou relações. Nada a demoverá de reclamar o que lhe pertence, afirma. Neste, como em tantos outros casos, o sangue é mais espesso do que a água, mas quando ferve queima até ao osso.